domingo, 27 de maio de 2012

Os números negativos



Os velhos sabem que a morte usa uma força constante para atrair o tempo. Depois de uma ligeira ascensão somos sempre puxados para baixo até ao embate na tela escura do fim, num movimento uniformemente acelerado…
Os jovens encaram os velhos com o desprendimento e com a arrogância de quem pensa que entre os vinte e os sessenta  anos vai uma distância incomensurável de tempo; Se soubessem porém como é fugaz essa centelha de quarenta e tal anos que separa  a juventude da velhice, teriam todo a sabedoria  que só o viver dá…
É por isso que contrapor-se um sofrimento atroz presente nos medos atávicos do subconsciente humano a uma morte “distante e indolor”… é uma ratoeira vil e vincularem-se as pessoas a um compromisso futuro como o testamento vital, não pode ser motivado pelo desejo de se lhes querer fazer bem. Há outras razões subjacentes, intenções inconfessáveis, armadilhas  miseráveis como as letras miudinhas ou o sentido inacessível das apólices, minadas de ardis jurídicos  e semânticos.
Onde e para quantos há acesso ao tratamento da dor ou de outros cuidados paliativos?
Em que país fantástico se viu esse encarniçamento terapêutico, esse obrigar os doentes a viverem tanto como Matusalém? Se for um banqueiro, um jogador de futebol… até admito que possa haver certos exageros, mas o cidadão comum não tem   sob este aspecto de ter algum receio… Como individuo honesto que considero ser, como pessoa que já esteve na eminência da morte como médico e como doente, garanto-lhes que não há que recear essa utopia de que nos querem convencer… Quando a morte se acerca e nos arrefece os pés com o seu bafo gelado, a percepção aumenta e há o receio, isso sim, de que alguém motivado por um “altruísmo e uma piedade exageradas”, não insista o bastante na nossa reanimação e nos deixe partir sem grande oposição.
Mesmo no moribundo que agoniza esvaindo-se em melenas negras de cheiro pestilencial, e, em vómitos de mucosidades verdes horríveis de se verem, a morte é sempre digna. Nada tem de indigno o ser humano que luta desesperadamente contra a dor, contra o medo e contra a angustia… Indigno é não lhe aplacar a dor, não lhe mitigar o sofrimento e contrapor-lhe um convite para a morte…
Claro que perante a dor lancinante da metástase que carcome, comprime e corrói… face à ferida pútrida que não sara e baba pus e bocadinhos de carne do próprio ainda vivo, mas já em decomposição e escava, escava, escava… Acossado pela dispneia horrenda que chia, silva e pia em haustos desesperados, e, cava profundos desfiladeiros entre as costelas e crateras supra claviculares de tiragem, fazendo o infeliz assemelhar-se a um barco naufragado a que o mar arrancou o costado e expôs a quilha e o cavername e matizou tudo com os livôres azulados da cianose… claro, se lhes apontarem como única saída o além, muitos no seu desespero aceitarão… mas a morte não é um tratamento, é o fim do mundo para quem morre e propô-la como alternativa é de uma enorme maldade, incompatível com um ser que na a sua megalomania chega a afirmar-se feito à imagem de Deus, não de um Deus abstracto e difuso, mas de um Deus concreto com atributos e características, como omnipotência, omnisciência e bondade e que se assemelha em todas as religiões e que fez os homens à sua semelhança e os dotou de alma… ao contrário dos outros pobres animais…
Esse Deus cuja existência se não provou ainda, tem tantos crentes, tão grande aceitação, porque o ser humano consegue lidar com o extermínio dos velhos, dos fetos, dos doentes, dos débeis ou seja de quem for sem grandes contemplações, mas quando se trata de si próprio invade-o um desespero insuportável, e, não havendo forma de eximir-se à evidência inexorável da sua própria morte, imagina e concebe uma alma e um além, num mecanismo de defesa contra o pavor dos pavores, a concepção aterradora do seu próprio fim, o que na minha opinião, prova sobretudo a nossa capacidade de sonhar .
Imagine-se uma cripta imensa com centenas de caixões abertos com o defunto deitado; isso não nos causa grande horror, é até um tema recorrente dos telejornais; tente imaginar-se que além naquele ataúde somos nós e ver-nos-emos percorridos por um medonho e horroroso calafrio, que nos gela o sangue e nos prende a respiração.
Se se quer ficar com um imagem digna de cada um e se a dignidade é máxima no auge da vida, como parece ser opinião actual e consensual, instale-se em cada cidadão um detector subtil de decadência e logo que este comece a dar sinal, atraia-se o cidadão a uma “vipalhada”, tirem-se-lhe umas fotografias e a seguir, mate-se o cidadão súbita e instantaneamente para que este não suspeite e não sofra, e, envie-se a fotografia à família, devidamente emoldurada para enfeitar a sala e constar para a posterioridade…
Se os cérebros sobredotados que nos orientam e alumiam a nós pobres cidadãos vulgares querem evitar a situação em que a decisão da subscrição da eutanásia ou do testamento vital se baseie em fantasias, crie-se uma fábrica de ampolas de cianeto de potássio ou similar e instalem-se estas ampolazitas miniaturais nas talocas dos dentes cariados, o que entre nós é uma constante, já que a medicina dentária só existe na privada onde um “pivot” custa mais que um prédio na baixa pombalina, e providos deste interruptor da vida ao alcance da ponta língua, como a maledicência, as pessoas perderão o receio de que as obriguem a viver por “obstinação terapêutica” e adiarão a decisão. Talvez a exportação do medicamento a que podia chamar-se “simplexpax” e tirar patente, fosse um êxito e melhorasse o nosso índice de exportações e até talvez motivasse mais partidas para o além do que a eutanásia e o testamento vital.
            Mas se o que se pretende é “tratar” as pessoas cuja produtividade vale menos que a sopa que comem, tatue-se-lhes no lóbulo da orelha um número negativo para introduzir alguma ordem e justiça na “solução”.É profundamente injusto que o cidadão acabado de chegar à reforma ou à invalidez, seja morto iatrogènicamente à frente de outro que já ande a passear-se há dez anos…Algures, numa colónia penal francesa procedia-se à execução na guilhotina de seis condenados. Após a degolação de cada um, os ajudantes removiam o corpo da báscula e o carrasco pegava na cabeça pelas orelhas e exibindo-a aos espectadoras dizia: - Em nome do povo francês fez-se justiça -. Li a descrição friamente, tentei até raciocinar e perceber se o condenado teria ainda a percepção da cabeça a descer ou a do cesto onde ia cair a aproximar-se, e, de repente estremeci estarrecido ao ler, que eram sempre decapitados primeiro os de menor culpa, para os poupar ao horror da execução dos outros… Ainda hoje o meu senso de justiça estrebucha em safanões e sobressaltos, quando penso nisso… A vida é só uma e acabá-la primeiro é aumentar e não diminuir o castigo… isto na minha opinião claro.
            Justo, justo seria a conversão do tempo em euros, sendo a lista ordenada segundo o desfalque que em cada momento o inválido, o reformado, o incapaz o débil ou enfim o “número negativo” representasse para o erário público, depois de lhe terem sido creditados os descontos para a Segurança Social. Reconheço porém, que tal propósito seria inviável e portanto absurdo, porque nesse caso muitos dos nossos gestores, administradores, políticos relevantes, seriam “tratados” mal chegassem à aposentação… Teria até de se inventar a” morte retroactiva”… alguns vão ganhar num só dia a  reforma  anual, de mil dos outros…
            Mesmo na morte pedida com veemência e convicção pelo próprio, não creio que se possa aduzir de imediato que este quer morrer… talvez se trate apenas de uma súplica para que lhe digam que o amam, que ainda é apreciado… e o pudor, a queda abissal da sua auto estima só encontrem este modo acanhado de expressão...O velho, olhado com dureza pelos seus, que lhe fazem sentir que já nada faz na casa que foi ou é sua, que passa a recear e a sofrer a cada olhar que lhe lançam os filhos, os netos, a família que ama ou que amou… carente de uma migalha de apreço ou de bondade, afastado da mesa de jantar porque lhe criaram nojo, esse velho, esse doente ou seja que miserável for, vai querer esconder-se do horror de si próprio e aceitar que o matem, mas isto não é evolução: é um horrível mundo novo, é entrar para um inferno pior do que o descrito por Dante, é reentrar na caverna de onde ainda há pouco saímos…
            Quando ardem “lares” e se constata que os velhos, os doentes, os loucos, eram amontoados em caves, enjaulados por grades que o fogo transformou em ratoeiras mortais, é consensual nas famílias que o lar sempre lhes parecera um “paraíso terreal” e que viverem cem num quarto para dez, embelichados em prateleiras, como os defuntos importantes nos túmulos finos, foi uma autêntica surpresa...
            Não se devem encará-los com dureza, porque todas as coisas bidimensionais têm o direito e o avesso e em todas as coisas humanas há a versão do próprio e a versão da contraparte e analisados com imparcialidade a ambos assiste, quase sempre, parte da razão. Os filhos do velho, do AVC, do neoplásico… ou qualquer dos seres humanos, a quem a vida pregou a partida cruel de privar da autonomia suficiente para se bastarem a si próprios, têm muitas atenuantes: - trabalham demasiado e longe, chegam do emprego a desoras e têm ainda os filhos e os trabalhos domésticos, vivem em casas acanhadas onde se atabafa e onde não há espaço nem privacidade, não têm posses para contratar ajuda, eles próprios foram encafuados em infantários aos três meses de idade, passaram o tempo com estranhos, foram educados pelos amigos e por programas estupidificantes de televisão onde se identificaram com personagens dúbias…e num mundo assim traçado os afectos não medram, os laços familiares diluem-se e como é óbvio, é preciso não só disponibilidade como grande dose de ternura, para tolerar a presença do encargo.
            Não sou de esquerda nem de direita, nem do centro (que não o há) e não acredito nem nuns, nem nos outros. Penso que quase todos se movem sobretudo pelos seus próprios interesses. É preciso repensar o mundo, colocar como prioritário o útil à maioria e não a maioria andar a ser esbulhada no interesse de alguns… Urge mudar de actores políticos, estes como num pequeno carrossel de feira pobre, reaparecem constantemente; parecem células embrionárias pluripotênciais... girandam entre cargos e tacharia. Os salvadores de hoje já foram os coveiros de ontem e vice-versa…
            Em criança o monstro dos meus pesadelos era um polvo; branco, gelatinoso, com olhos pretos, fixos e maus. Depois não sei porquê o polvo metamorfoseou-se numa mulher seca, vestida de hábito negro de face cerea e adunca e de olhos pretos, parados e cruéis como os do polvo; as feições perderam o tremelicar balofo do cefalópode e fixaram-se num sorriso de bondade estática e imutável, inacessível a qualquer súplica ou sofrimento, gélida e impiedosa, com a ideia fixa de bem fazer, para ganhar o próprio céu… sintetizável  nesta frase que aprendi algures nas igrejas: - de que vale salvar mil almas se se perder a própria alma… há nela a essência de todo o egoísmo humano… isto na minha opinião claro.
            Agora já velho os meus medos cristalizam-se num ser híbrido ou “mutante” de agiota e de ave necrófila, que se alimenta da miséria e da morte e que em breve tomará conta da saúde e determinará quem vai morrer e quem vai viver, pondo de um lado da balança a vida e do outro lado o seu valor em cêntimos…
            Acredito sinceramente que a maior parte dos colegas que defendem a eutanásia, o testamento vital ,ou qualquer outra forma de compromisso com a morte, o fazem honestamente e que acreditam que estão a agir em conformidade com os interesses dos seus doentes; não sou, nem pretendo ser, o “dono da razão”… Mas os médicos já ocupam um lugar pouco relevante nas esferas de decisão e em breve serão apenas os “trabalhadores médicos” como um colega com razão, disse… A “interrupção voluntária” da velhice ou da doença vai ser um êxito, como o é, a interrupção voluntária da gravidez, que corre lindamente e superou todas as expectativas… Há quem já a use em vez da”  camisinha”…
            São as palavras simples que combinadas de certa forma, produzem os poemas mais belos e as obras-primas da literatura e é com elas que as mentes laboram, escavam e tornam os pensamentos profundos. As palavras complexas, esquisitas, causam emperros na fluência das ideias e ditas em voz alta soam pretensiosamente. Foi com uma mescla de gente simples, vulgar, e só muito esporádica e raramente com génios, que a humanidade atingiu o cume de onde começa a “descer”… Alterar as proporções pela “solução” é um déjà-vu usado pelos nazis e muitos outros.
            As famílias que já tinham feito o luto dos seus velhos ao colocarem-nos nas cadeiras sem braços dos lares, onde absortos, com os olhos fixos num mundo ido e vazio, se quedavam hirtos, mudos e desolados à espera do último acto, em que embora presentes já nada verão… Estão a trazê-los de volta à doce casinha… Espero que no alarido alvoraçado das manifestações enternecedoras desde renascimento dos afectos pelo velho não se esqueçam de lhe ir dando a sopinha… claro que saber se o velho criou laços de ternura, com os irmanados pelo sofrimento de terem sido postos fora da vida ainda vivos e sentados a monte na mesma salinha, partilhando um destino inexorável comum, claro que sabê-lo, é irrelevante… A alegria desmesurada do regresso à terna família, supera e compensa tudo… o próprio provedor dos gerontes, se o houvesse, o diria…
            Há dias que vivo obcecado por uma ideia fixa; tudo começou num sonho: - Andava a cavar no quintal e encontrei uma “Lâmpada de Aladino”.O génio que de lá saiu propôs-se satisfazer-me um desejo e eu pedi-lhe, que usasse o seu poder absoluto, para mudar o estado calamitoso a que o país chegou… O génio concedeu-mo e confidenciou-me que ia começar por “deslocalizar” o Parlamento, os Ministérios e também a Presidência da República e agrupá-los a sudoeste, nesse lugar maravilhoso sempre cheio de sol, quando o há, situado a meia distância entre o padrão dos descobrimentos e o forte da Trafaria. Algures na noite um estrondo atroador despertou-me… desde então que tento deduzir, debalde, numa mono mania fremente, constante, se e como é que o génio, ia colocar o edifícios à superfície?…

João Miguel Nunes Rocha
(Publicado na revista da Ordem dos Médicos de Janeiro de 2012)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Reflexões de um geronte

“Admiro profundamente o nosso Primeiro-Ministro Sócrates, sobretudo pela luta quixotesca, reveladora de enorme coragem, que empreendeu contra os poderosos lóbis que são: os reformados, os funcionários públicos, os doentes.
Aludindo aos primeiros, é inadmissível que os reformados, a maior parte dos quais nada produz, continue a revelar apetite voraz e a querer comprar medicamentos, para óbvia e malevolamente, aumentarem o tempo de encargo que sobre os outros representam.
Urge pois, diminuir-lhes as pensões mesmo criando leis retroactivas e alterar unilateralmente os contratos em detrimento dos velhos. Criem-se-lhes impostos suplementares...
Há tempos visitei uma dessas pré-morgues que são os lares dos pobres diabos que são os velhos em geral, e os velhos pobres em particular e fiquei impressionado com o apego à vida que transparece do seu olhar senil. Não percebem como é inútil essa vida quase vegetativa e que estariam muito melhor mortos?... É urgente pois, (na minha opinião), que o nosso Primeiro-ministro legalize a eutanásia e depois lhe aplique um programa tipo simplex, de modo a evitar as delongas do consentimento do próprio, transferindo esse papel para a família ou melhor ainda para uma comissão política (Unidade Missão), o que terá vantagens de repercussão imediata em vários domínios da governação: desde logo diminuirão os encargos com a segurança social com maior sustentabilidade desta, haverá diminuição do défice e diminuirá o índice de envelhecimento da população, sem que as nossas jovens tenham de parir, ou os nossos mocetões de maçar-se com o acto da procriação.
Retomando o assunto em apreço acresce que é profundamente injusto que após uma carreira contributiva equivalente, a uns lhes dê logo um ar, e outros persistam em viver para além do razoável, onerando todos os contribuintes. Diz-se, que um certo ditador, que obviamente não tinha só defeitos instituiu para os indigentes mais retardatários o chá da meia noite, de que consta que os velhos não regressavam; vá se lá saber onde a verdade se mistura à calúnia e à fantasia…
Quem teve a eloquência suficiente para convencer os portugueses, de que fora necessário aumentar os impostos que se prometera baixar, e, de outras enormidades do género, facilmente convencerá os velhos da bondade da medida e de que a quietude do outro mundo, é de longe preferível às ansiedades da reforma insuficiente, ou à miséria da solidão sem afectos…
Creio que esta medida não levantará contestação dada a vestutez do alvo e a propensão natural das famílias em admitir as vantagens da urna ou do cenotáfio, em relação à presença física e viva dos gerontes.

Também não é de esperar da parte dos médicos urna oposição renhida á ¡implementação prática da medida. Tendo todos por inexorabilidade da morte um prognóstico fatal, arredado está o único parâmetro objectivo, restando a arguição com substantivos como sofrimento, vida, dor... que mesmo enfatizados por adjectivos como insuportável, válida, atroz... não deixarão de ser subjectivos e de grande plasticidade. Espero que tal como na interrupção voluntaria da gravidez, onde fugindo-se ao cerne, se centrou a discussão nas hipóteses do inicio da vida humana, sendo a certeza de que esta se inicia na concepção, abalada por teorias alarves que colocam o princípio em regiões nebulosas onde o juramento de Hipócrates e a lei do aborto não colidam visivelmente... No tema em apreço adoptar-se-ia urna posição ambígua e prudente, em tudo semelhante.
Já vi a expresso de tristeza infinita dos velhos e dos doentes terminais, que escorraçados de casa e da família, foram abandonados para morrer em lares como se fossem amortalhados e colocados no caixão ainda vivos.
Já vi a morte miserável e cruel de alguns seres humanos, que já defuntos, apresentam ainda os traços indeléveis da sua agonia atroz. E. já vi os rostos medonhos deformados pelo terror e pela angústia do fim, do seu fim... Mas nunca vi ninguém que quisesse morrer... O que no caso dos velhos é absurdo... Se não fosse a isquemia cerebral, o alzheimer ou outras doenças que alteram a razão, perceberiam que são um tropeço para si próprios e um encargo e/ou um adiar intolerável da herança, para a família,
O estado, essa pessoa de bern, que lhes paga cada vez mais relutantemente as cada vez mais magras pensões, alterando-lhes os contratos de aposentação de forma unilateral e vil, está no fundo a contribuir para a longevidade, já que a carência alimentar prolonga a vida e um regime de forne substitui com vantagem as estatinas, que são caras e inacessíveis á maior parte dos gerontes. Corno os velhos em geral, desejaria não morrer ainda, mesmo que viver signifique apenas um fluxo incoerente de pensamentos, (como este), e alapar-me contra um muro virado a sudoeste para que o sol ajude o metabolismo a aquecer-me os ossos. Receio porém receber em breve urna convocação para a E.G.S.S. onde me será administrada a injecção simplex, que panaceia para todos males, curará os meus, e me enviará para regiões paralelas onde continuarei a existir fraccionado, na seiva dos ciprestes, na substância de gerações sucessivas de ratos e de vermes e na urnazita, onde rara e esporadicamente os filhos se juntem e limpem ostensivamente a lágrima inexistente. Neste mundo mediático tão caro e aprimorado pelo Senhor Primeiro-Ministro que aparece nos canais do pequeno ecrã constante e simultaneamente corno se tivesse o dom da ubiquidade, e que apesar da imutabilidade dos temas (relato de um êxito em que o seu papel foi de relevância predominante e imprescindível) nunca é fastidioso... Porque não melhorar ainda mais e mais rapidamente o futuro, substituindo os velhos que nos foram deixando de morte natural ou iatrogénica, por clones de figuras de mérito, calculando-se este, por adição de créditos como um ilustre ex-bastonário (de mérito vitalício) quis fazer em relação aos médicos, recertificando-lhes o curso, ou transferindo-os para a ordem dos licenciados mendicantes...
Às vezas, nas horas estranhas de sonho-lucidez que antecedem o amanhecer, surpreendo-me a pensar num horrível mundo actual, em que os animais são criados para abate cm corredores semelhantes a linhas de montagem, os homens se tornaram to descartáveis como lenços de papel e os políticos são as marionetas, e as faces visíveis de um poder oculto, horrível e maligno, que se apossou do mundo, e que torna possível o extermínio de milhões de seres humanos e de nações, em norne da democracia, torna plausível que o nosso défice possa ser diminuído pela venda de dividas fiscais por 15% do seu valor, não haja o bastante para honrar compromissos ou manter as pensões, mas haja de sobra para Expos, estádios, OTAS e TGVs e então invadido pela hiper-lucidez do terro pânico, percebo que o esbulho dos cidadãos ainda mal começou, e que se não corrermos com esta gentinha, acabaremos rodos, com excepção dos do costume, com a trouxa dos sem-abrigo, ou na fila da eutanásia para nosso bern.

João Miguel Nunes Rocha
 (publicado na revista Ordem dos Médicos, na edição de Outubro/Novembro de 2010)

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Extraterrestre Enigmático

Já morri há dois dias, já fui amortalhado, já entrei em decomposição e tresando, mas, não consigo adormecer…
 Já vi a doença mutilar ou matar de forma requintadamente atroz, mas a percepção descrita no filme de Ingmar Bergmam persiste inalterada na sua intensidade de soco, contendo em si um inferno tão pavoroso como o subentendido, nas ameaças de qualquer religião que o aceite e o preze:- haverá choro e ranger de dentes .-
 Não é preciso porém imaginar cenários, basta observarmos o nosso civilizado mundo.
 O homem olha para os seus três filhos magros como esqueletozinhos, olha para a meia-dúzia de olhos famintos, arregalados e ávidos que lhe seguem todos os movimentos, olha para as três bocas que se abrem, que se fecham e que mastigam, enquanto só ele come e pára; olha para os olhos da sua mulher tristes, e onde fulgem uns laivos de censura e de desdém, olha para os olhos dos seus velhos tristes, e onde assoma o medo e uma imensa desolação, e acabrunhado, sentindo que atabafa, levanta-se e sai. Dentro dele fervilha e cresce uma raiva de querer morder os que o esbulham, o oprimem e o enganam…E todos os dias se formam novos magotes destes homens e destas mulheres, enraivecidos porque encurralados, entre a fome dos seus e a sua impotência para os saciar…Juntem-se alguns milhares destes homens e destas mulheres e lá virá outra vez  a guerra com o seu rol de mais fome, de mais morte e de muita gente, muita gentinha a ganhar. Talvez tudo tenha sido cuidadosamente planeado e tenha o acordo tácito do novo Hitler XX.
 O velho grego cercado por esta gente que lhe tornou a morte preferível à vida, deixou bem expresso o motivo porque se matava.
 No nosso país conhecido pela amenidade do seu clima, num dos Invernos mais suaves de que há memória, os velhos morrem às mancheias “transidos do frio ou da pneumónica que não houve”, e não há ninguém com voz audível, que grite “o rei vai nu”, tolhidos por este medo que nos avilta e denigre, empequenece e mói. Neste clima de terror-pânico induzido e atiçado pelos mandatários, propício a todos os abusos, os cidadãos atónitos e estarrecidos rezam e acalentam a esperança ténue, de que a crise se resolva e o país se cure, mesmo matando todos os doentes, todos os velhos, todos os dementes, todos os deficientes; e o poder instituído fá-lo, e para manter a ilusão, vai exterminando também a classe média com impostos, confiscos, taxas ou Ciclon B…
 Dos pedidos de desculpa passaram às premunições de desgraça numa persistência avassaladora e feroz de hienas, que se atiram ao leão e o devoram vivo, depois de se certificarem cautelosamente, que este perdeu as garras e os dentes, a pujança e a força. Querem que o tom grosso com que nos ameaçam transmita credibilidade e firmeza, mas há nele um falsete de tenor eunuco.
 Elegemo-los porque nos enganaram e porque desejávamos um futuro mas eles não vieram para nos salvar nem para construir ou semear. São mandatários do poder maligno que se apossou do mundo e vieram para esgaravatar na nossa miséria e aprofunda-la. Vieram ao saque…
 A sua actuação amestrada não exige ideias, que aliás não têm, e por isso quando espontâneos, confrangem-nos pela singeleza: tirar gravatas para poupar energia, exportar pastéis de nata, “plafonar “ a Segurança Social aumentando-lhe a sustentabilidade…Hoje dizem uma coisa, amanhã dizem outra, com a mesma cara e a mesma desfaçatez…
 De que massa é feita esta gentinha, que chega a pensar ter graça, quando ironiza sobre o regresso dúbio dos subsídios que roubaram, indiferentes ou ofuscados pelo próprio esplendor sem sequer verem, os cumes do desespero e da angústia dos seres humanos infelizes, para quem esse dinheiro era vital. Que massa enformará esse senhor que deu espectáculo público, em lamentos plangentes, sobre os montantes que aufere e não suscitou sequer a verificação da inconstitucionalidade do confisco permanente dos dois salários anuais, aos funcionários públicos e aos velhos… Chegam ao desplante de quererem imputar aos cidadãos a culpa da dívida do país; que raio, eu nunca pedi empréstimos ao banco mas o meu vizinho fê-lo para ter uma habitação, e depois de muitos anos a paga-la, deixando de poder fazê-lo, o banco sem dó, ficou-lhe com o pago e com a casa mas manteve-lhe a dívida…Não enxergo a culpa do meu vizinho ou a minha, ou a dos que tendo-se endividado, continuam a pagar ou já pagaram…
  Após quase um ano de governação persistem nas lamúrias e desculpam-se com o passado, que são eles mesmos, e com a “troika”. Para além disso, o que fizeram?
 Aumentar todos os impostos, provando que as promessas pré - eleitorais foram um embuste.
 Colocar longe do cidadão do interior, tudo o que este, também paga.
 Alterar todos os contratos, logrando os portugueses e enxovalhando com uma nódoa indelével, a boa fé e a credibilidade do estado.
 Dizer aos nossos filhos, que não há lugar para eles na terra onde estão as suas raízes e os ossos dos seus antepassados
 Fazer negócios ruinosos, como o de vender por quarenta milhões de euros o que custou dezenas de milhares de milhões de euros ao contribuinte, e ao depositante também o seu pecúlio
 Vender aos estrangeiros o nosso país e a nossa independência, o que configura um crime de traição e como tal devia ser punido…
 Fazer os portugueses corar de vergonha pelo modo obsequioso, servil e abjecto, como se curvam aos poderosos e lhes dão o dinheiro do contribuinte esbulhado e tratado, arrogante e iniquamente.
 Privatizar, privatizar, privatizar. Taxar, taxar, taxar. Confiscar, confiscar, confiscar.
 Do pouco de bom que resta, atiraram-se agora ao SNS, e sob o pretexto de o tornar melhor e mais barato, vão privatiza-lo…
 Mesmo admitindo como certo, que a parcela dos lucros legítimos será integralmente paga, não pelo contribuinte, mas pelo extraterrestre enigmático responsável pelo nascimento e pelo crescimento de grandes fortunas entre nós, haverá, mesmo assim, a grande probabilidade dos privados intervenientes no negócio se deixarem possuir pela ambição (os ricos são-no porque amealham e não por dar) e depois de ferrarem os dentes na saúde, quererem desenterrar tesouros da doença, arrancar dobrões de ouro às terapêuticas, espremer a angústia em jorros de euros luzentes, depenicar na agonia e na dignidade…

(Publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS • Julho/Agosto 2012)
                              
João Miguel Nunes “Rocha”