sexta-feira, 1 de junho de 2012

Episódios Fugazes de Lucidez


Já fomos à lua, já lançámos bombas atómicas matando de uma penada dezenas de milhares de seres humanos, já clonámos animais e até talvez homens... mas tanto como as descobertas científicas que me deixam estarrecido e maravilhado, sempre me fascinou o poder espantoso das palavras.

Escolha-se um acto horrendo, deixe-se que uma criança o descreva, e, na crueza singela com que o faz, o acto nada perderá de horrível. Coloque-se o mesmo acto nas mãos de um advogado talentoso e com o “dom da palavra”, e, ele burilará a linguagem suprimindo-lhe as arestas que ferem e que chocam, arredondará as frases agudas e cortantes, e, como por magia, o nosso horror transformar-se-á em aceitação, talvez até que aquiescência...

Este poder modelador espantoso das palavras, atinge o sublime na literatura mas tem aplicação em todas as profissões e artes.

Através dele: - o pintor medíocre mas imaginativo e fluente, consegue convencer-nos não só de que os borratões e gatafunhos com que pintou a tela são arte, mas que o facto disso se não nos tornar imediatamente evidente, se deve à nossa tacanhez e falta de espiritualidade... o colega persuasivo consegue que a eficácia placebo do medicamento quase supere a eficácia farmacológica, e à s vezes até acertar na cura quando errou o diagnóstico e a terapêutica.... o sacerdote eloquente (seja de que credo for) consegue trocar bens presentes por bens futuros e do outro mundo e nos nossos políticos desonestos, hábeis e sagazes (tríade em vias de extinção) conseguem não só vender-nos gato por lebre como provar-nos as vantagens de cozinharmos e paparmos o “bichano“…

É o que vai acontecer com a saúde que apesar de em queda acentuada é das poucas coisas que ainda funciona razoavelmente no nosso Estado, dito de Direito. Sendo a saúde tendencialmente gratuita só pode obviamente representar uma despesa para o pagador final que é o contribuinte. Não se percebe, mesmo que se possua uma imaginação fecunda, como é que privatizando-a, isto é, interpondo entre o utilizador e o pagador uma entidade que a explore arrecadando lucros, os custos podem diminuir. É evidente para qualquer indivíduo celebrado, mesmo para aqueles em que a inteligência contribui escassa ou irrelevantemente para o peso da sua extremidade cefálica, que aos custos que houver somar-se-ão os ganhos que a entidade exploradora fizer seus, e o custo final, é o que resultar da adição das parcelas...

Contradirão os defensores que haverá melhor gestão, racionalização dos custos... mas isso tanto é possível tanto agora como depois, tanto no que é público, como no que é privado.

Mas há muito que os grupos parasitários, despóticos e rapaces, que detêm o verdadeiro poder e que da sombra dos bastidores, dirigem a aparente autonomia política e mediática, elegeram a doença como mais um alvo a sugar e portanto isso acontecerão inexoravelmente, como fica sobejamente provado pelo estado lamentável a que chegámos, conduzidos qual rebanho, pelos nossos políticos, os mesmos com poucas excepções desde há vinte ou trinta anos.

Esbanjou-se o dinheiro do país em estádios e expos, mordomias e enormes falcatruas. Destruiu-se o tecido produtivo a troco dos milhões de Bruxelas que desapareceram sem rasto e sem benefícios em bolsos sem fundo. Criaram-se entidades supervisoras pagas principescamente para impedir os cartéis e limitar a usura e eles falharam redondamente. Fizeram-se negócios ruinosos para o erário público e a candura virginal com que todos estes responsáveis afirmam a sua inocência contunde com a nossa boa-fé... que raio, nós bem vemos pela maneira elegante como seguram e exibem a Montblanc, opondo o polegar aos outros dedos... que eles até são primatas.

Alteraram-se as regras de aposentação aos portugueses em fim de carreira, ou até depois da reforma, o que em linguagem jurídica se chama incumprimento do contrato e em português vernáculo roubo.... Alteraram-se as leis laborais a favor dos nossos grandes empresários precarizando-se o emprego e mutilando-se a esperança.

O cidadão ingénuo que acreditou que o Estado ainda é o guardião do direito e da honradez e lá depositou o seu aforro, viu-se esbulhado pela alteração das regras, e para cúmulo recebeu uma carta do IGCP a informar que o não foram... tanta desfaçatez constituiu na minha opinião, um ardil táctico (estes indivíduos versados nas coisas do dinheiro e da usura não são ingénuos nem susceptíveis de cometerem erros crassos), para gerar desconfiança e induzir a mudança das poupanças para BPN, BPP... cujo epílogo foi a farsa, ou antes o drama que foi pegar em enormes verbas do contribuinte e dá-las não às vítimas (estas perderam definitivamente o seu dinheiro) mas aos ladrões...

Ultimamente tornei-me atreito a episódios de clarividência, estado em que deduzi o supracitado, e também que há uma relação directa entre certas palavras que perpassam cada vez com mais frequência nos meios de comunicação, se fixam nas mentes, criam vulto: - Eutanásia, morte digna, encarniçamento terapêutico, testamento vital, coitadinho para este infeliz era melhor morrer... E, no reverso da mesma moeda privatização da saúde, contenção de custos, salas de cuidados continuados... a passo e passo procurar-se-á atingir o ideal, que é o cidadão morrer de um ataque de alegria, no dia em que passar à aposentação.

A miséria atinge um quinto da população, o desemprego alastra como a peste nas cidades medievais, de forma avassaladora, mas apesar disso qual Arauto da Boa Nova o Senhor Primeiro-Ministro vem todos os dias dar-nos as boas notícias cheias de superlativos: - inaugurou o maior do mundo, fez melhor que todos os seus antecessores isolados os juntos...

O Senhor Engenheiro não percebe nem tem nenhum amigo verdadeiro que lhe diga que já não é convincente mas apenas... repetitivo...

Por contingências da vida e inerência da natureza humana o rol de actos que podem denominar-se de altruístas são na minha opinião, notoriamente escassos:

- O cruzado ia pelo céu;

- O navegante pela fama, pela fortuna e pela baforada adrenérgica da aventura;

- O próprio homem bomba talvez se faça explodir por Alá e pelas setenta virgens.

Só os nossos políticos e alguns dos nossos colegas o fazem exclusivamente pelos outros: eis a essência do altruísmo diria mesmo a essência de um “altruísmo excessivo”.

Foi norteada pelo altruísmo que uma senhora da nossa política procedeu à elaboração do IMI pelas regras CIMI onde por razões ecológicas, ambientais e outras igualmente meritórias se penaliza menos o palacete com piscina, campo de ténis e dois hectares de relvado do que a casita dos subúrbios com quintalinho envasável e garagem individual. O Decreto-Lei que regula a aplicação deste imposto, também chamado sinistramente de Imposto Municipal sobre Incautos, constitui uma pequena obra-prima do terror, sem recurso ao sobrenatural.

Foi também norteados pelo altruísmo e pelo dever pátrio que os colegas do Ministério da Saúde procederam à elaboração da lista de prioridades de vacinação em relação à gripe pelo vírus H1N1.

Se a gripe fosse a pandemia trágica que nos anunciaram e não o embuste que parece que foi, teriam conseguido eliminar de uma vez por todas muitos velhos e grande parte dos doentes crónicos mais graves, que se agarram à vida como as lapas às rochas da rebentação, arrastando o país para o abismo do défice e da insolvência.

E, foi devido ao maior e melhor dos altruísmos que o Senhor Primeiro-Ministro se fez vacinar sob os holofotes mediáticos em primeiríssimo lugar. O Senhor Primeiro-Ministro para quem a gripe teria representado dois espirros e uma tossezinha, bem sabe com a sagacidade que o caracteriza como os portugueses lamentariam a sua indisponibilidade para vir às horas do jantar dar as boas notícias.

Reparei que o Senhor Primeiro-Ministro suava. Seria do calor das luzes, da “síndrome da sudurese altruística já descrita por Hipócrates” ou do medo da picadinha?

Os Senhores Deputados ou Senadores (termo que preferem) que já há alguns anos nos deram prova soberba do muito altruísmo que lhes rege e enforma os actos, ao aprovarem para si mesmos, direito à reforma por inteiro ao fim de quatro anos de carreira contributiva, deram-nos mais um exemplo de abnegação ao encimarem a lista de prioridades de vacinação.

As prisões regurgitam de pobres diabos, drogados, pequenos delinquentes e até de pessoas de bem, enquanto os facínoras, os padrinhos (sem os códigos de honra de Dom Corleone) se passeiam entre nós, nos exibem a sua riqueza numa ostentação impúdica de novos-ricos e fazem sentir aos nossos filhos, que nós seus pais, não passamos de falhados...

O meu ego pretende que as afirmações que fiz resultam do uso de uma inteligência ainda razoável e de um acúmulo de sabedoria, mas admito estar redondamente enganado. Dos aspectos macroscópicos da velhice estamos todos abundantemente informados e muitos de nós fartos... mas no seio dos tecidos, onde a morte e as adaptações celulares à isquemia coexistem ainda não sabemos tudo, e, portanto admito que estes episódios fugazes de lucidez se devam à  produção de alguma substância química que induza um delírio coerente ou incoerente.

E neste país à beira mar, cheio de sol graças ao bom clima e cheio de sucesso e de progresso graças à boa governação, grassa o desânimo, um desânimo viscoso e palpável que deixa nos rostos traços indeléveis de tristeza, como nós médicos, nos habituámos a ver nos doentes terminais que perderam a esperança e sabem que a morte é o fim definitivo e inexorável.

E têm razão nesta perda de esperança, porque a desfaçatez ignóbil com que lhes mentem, esta alteração constante e unilateral dos contratos depois do cidadão ter cumprido a sua quota-parte, sob o pretexto de maior justiça, de maior sustentabilidade, disto ou daquilo... blá, blá, blá... significa o que no fundo todos sabem, que chegou ao fim o Estado de direito e que o refrão da velha canção, recuperou toda a sua actualidade: - Eles comem tudo, eles comem...

Agora até nos podem acenar com vantagens, mas em breve, nós médicos, faremos também parte da ementa.

João Miguel Nunes Rocha

 
(Publicado na Revista da Ordem dos Médicos de Fevereiro de 2010)