sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Medo

          E=mc2 talvez não contenha todas as variáveis que mudam o tempo. Talvez outros factores como a angústia, o medo, o relembrar, o querer viver mais, o desejar ardentemente, o aproximar vertiginoso do fim, transmutem as dimensões do tempo e um instante possa intemporal, transcender-se, e coadjuvado, tornar-se incomensurável…
          No rés-do-chão do hospital, há a sala dos cuidados continuados onde os “acabados”, alguns ali há muito tempo, esperam hirtos que a auxiliar que leva os mortos, detenha sobre eles o seu olhar indagador e atento, que os sobressalta e apavora.
          Se pedirmos a cada um dos acabados, ainda capazes, que abram os olhos e nos fitem sentir-nos-emos atingidos por uma tristeza que nos fustiga como uma aragem viscosa e tétrica, que se nos cola e besunta como um gel gelado.
É perturbador, quase insuportável, esse olhar que adensa, soma e retém, a expressão de mil cães espancados e escorraçados pelo dono, sem razão, e assemelha-se em todos os seres humanos informados e convencidos de chofre, do seu fim. Depois da descarga de catecolaminas que nos exalta e sustém, vem o desânimo avassalador, álgido, terrível.
Se corajosos ou sádicos, olharmos com mais demora e atenção esses olhares fitos em nós, veremos que nalguns deles, em muitos deles, há mil lampejos pequeninos luzindo intermitentes, que interpretados, são mil apelos por uma injecção de ânimo e que dissecados em análises profundas e contextualizados, colocam a esperança a par do oxigénio, ambos de importância vital, indispensáveis…
           Quase todos os que ali estão, têm filhos ou famílias que os não querem ou os não podem ter, por centenas de razões plausíveis, explicáveis e explicadas quase sempre, com minúcias, expressões e tons pungentes, entrecortados por suspiros, haustos e ais, e por lágrimas que teimam em não correr, limpas ritmada e tristemente, a lenços enxutos…
Há dias que um rumor insinuando-se sorrateiramente, vindo não se sabe de onde, acrescentou mais uma labareda a este inferno já de si tão triste. Foi a notícia de que fora aprovado no Parlamento uma lei sobre a eutanásia, (não ainda a executada pelo venenozito ou pela injecção letal, mas outra ainda mais pavorosa, levada a cabo pela suspensão da terapêutica e dos meios de suporte vital) que liberalizando-a, a tornava aplicável, não só a pedido do doente mas também a pedido da sua família mais chegada. Os acabados que até aí olhavam para os filhos e para os netos, com a ternura amorosa de quem contempla o único elo material da sua eternidade, olham-nos agora de soslaio, sub-repticiamente, como quem avalia à socapa a pujança de um inimigo impiedoso e temido; as visitas, antes encaradas como um bálsamo terno, são agora esperadas com medo que a breve trecho degenera num rancor ácido, de pH suficientemente baixo, para num ápice, corroer e extinguir todos os afectos, pois não podem existir ou persistir amor ou sentimentos de benquerença, por quem nos quer, não só fora do seu caminho, o que até se aceita e se perdoa, mas fora do mundo, o que é totalmente inaceitável e imperdoável, seja por que motivo for, que no nosso interesse, não o é…
Há entre os “acabados” muitos infelizes, que afásicos e privados da eloquência do gesto, se vêm limitados a esgares ininteligíveis onde se não vislumbra nada que ateste o seu entendimento e ultrapassem a nossa competência de decifração…Sabe-se lá o que lhes vai na alma e se esta barreira que os separa das pessoas não é unidireccional, e se aterrados, percebem tudo…e se há alguma coisa mais medonha do que qualquer vida, é a morte…até os mais crentes, da gente simples aos mais altos clérigos, mesmo não o admitindo, provam-no, agarrando-se ao “aquém” até que lhes decepem os dedos…
No tempo em que as leis eram para aplicação “universal” e o legislador era sério, tinha brio e se esmerava por prever todas as hipóteses, eram excluídos da herança o médico e o padre que tivessem assistido o moribundo na sua fase final, dado o poder que tinham de sugestionar o infeliz, um prometendo-lhe a cura e o outro prometendo-lhe a vida eterna. Incluíam-se os familiares, como herdeiros legítimos, mas presume-se que a estes o doente conhecia sobejamente, para se deixar iludir… É por isso que outorgar-se à família, o poder de representar o incapaz, interpretando-lhe a vontade, me parece extremamente inadequado. Sem obviamente pôr em dúvida que a maior parte das famílias querem o melhor”para o seu doente”, desde tempos imemoriais que se sabe que o interesse prevalece em geral sobre os afectos…e a censura dos mortos, só exequível  por “vidências mediúnicas,” ou pelo remorso, que pressupõe consciência, é peso de pouca monta para os vivos e de nenhuma serventia para os mortos…
Se as galinhas não forem os animais estúpidos, que nós seres supremos, presumimos que são, será horrorosa e escusadamente cruel, a alameda do aviário onde de ovos passam a pintos, de pintos a frangos e de frangos a frangos degolados. São galinhas videntes, mais competentes do que o professor Karamba ou do que a astróloga Magda; do seu princípio adivinham o seu fim. Bastava bifurcar a recta, ocultando ao todo o destino de uma parte, para criar a esperança e acalentar em cada frango o desejo e o sonho utópicos, de escaparem à decapitação. Façamo-lo aos nossos velhos, aos nossos doentes crónicos, aos nossos inválidos…
Até os Nazis, no seu apogeu de extermínio, o fizeram. Nos grandes matadouros/crematórios de Dachau, Treblinka, Auschwits, Sobibor,Maidanek,Chelmo, Belzev, etc,etc, etc …(não só de judeus mas de todos os que divergissem da linhagem ideal dos arianos de “raça pura”, como os PIGS) os recém chegados a eliminar, eram sob o pretexto  de uma desinfestação (pediculose) e de um banho,  levados a um recinto, onde lhes pediam que se despissem e que  nus,  passassem a um simulacro de balneário, onde encerrados, eram pulverizados com o insecticida Ciclon B. Os nazis não lhes tinham mentido. Morriam sem piolhos…Façamo-lo aos nossos infelizes”acabados” por que informar seja quem for, do momento em que o vamos abater, mesmo que com o seu “acordo”, é de uma maldade excessiva…
  O que os “acabados”não sabem, porque sabendo-o sentir-se-iam apaziguados com a morte próxima, é que no mundo a que não tornarão, tudo é agora triste, sombrio e desolador e as pessoas atordoadas se movem em círculos entre escombros, cinzas e pó …do que foram sonhos, projectos, vidas…
           E todos os dias vêm acusá-los de uma dívida, mesmo aos que nada tiveram nunca, fazendo-as sentirem-se culpadas como nos pecados mortais da infância, em que se acreditava sem contudo se perceber.
  Os que se atrevem a olhar para o recôndito onde as verdades se despem, há muito que perceberam, sem margem para ilusões, que:
            A exorbitância dos juros da “dívida” exclui por si só, qualquer propósito de ajuda.
            A relutância obstinada em renegociar os “juros” alegando honra e credibilidade quem não teve pejo, de enganar os cidadãos que o elegeram, e de descer à vileza maldita, de amargurar os últimos dias dos velhos, não é crível.
            A pressa frenética que demonstram em privatizar tudo, por “quanto menos melhor”, mostra claramente ao que vieram…
             A própria maneira exagerada como representam o seu, já de si, odioso papel, acrescentando-lhe incerteza, “suspense” e uma desalmada canalhice, é excessiva, pelo que obviamente faz parte do plano, porque não se pode ser tão estúpido e ter-se aprendido o abecedário.
              A história sem fim, do cidadão que viveu acima das suas posses, o suposto pedido depois de uma reunião de todos os banqueiros, prova, na minha opinião que estamos a viver um enorme”conto do vigário”. Até Sua Reverência o Senhor Cardeal nos veio advertir da inutilidade das contestações…
              Depois de um empréstimo sabiamente calculado para extrair o máximo ao pedinte, este esvaído, deixa também o penhor. É assim que há milénios os agiotas enchem as suas arcas de ouro, e é por isso que nem os que lhes deveram, lhes ficaram gratos.
              Findo o seu desempenho de “mandarete de rapina”, o eleito vai desarvorar deixando um país devastado, cruzado por abundância de auto-estradas onde se paga por não passar, conduzindo a desertos desabitados e a frondosos eucaliptais, pronto à invasão do “capital” , sobretudo dos que muito levam, pouco trazem e nada dão…
              Os nossos grandes empresários quase todos estabelecidos no ramo da mercearia, explorarão também a saúde no cargo tríplice da engorda, do tratamento e da matança…
              Quem podia fazer alguma coisa age prudentemente, que cautela não é medo, não vá o poder cair-lhe precocemente no colo, derreando-o…
              Raio de mundo:
              Esbulham-se os velhos, os doentes, os cidadãos contribuintes, impede-se-lhes o acesso aos medicamentos, às terapêuticas, aos cuidados paliativos, criam-se situações de medo e de motivo para o ter, e abre-se-lhes a porta à morte garantida pelo Testamento Vital, cuja coexistência com uma medicina idónea, bem praticada e de acesso garantido seria de interesse residual, mas que num futuro próximo em que a saúde seja o “Grande Negócio”, fará todo o sentido.
 Os doentes pobres vão morrer mal esgotem o pecúlio ou o crédito e os doentes ricos (desde que saibam precaver-se dos herdeiros) vão aproveitar-se de todas as evoluções, e de terapêutica em terapêutica, de transplante em transplante, viver até de que deles próprios só sobrem, meia dúzia de neurónios entre ateromas e glia, mantendo vagas reminiscências do que foram num passado distante, sem contemporâneos sobrevivos…
 Estão a comer-nos as papas na cabeça. Tudo é preferível a este buraco negro onde  o medo e o desespero abundam e alastram e de onde a esperança se esvai…
                                              
João Miguel Nunes “Rocha”
(artigo publicado na revista de JAN/FEV 2013)