quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A PRAGA E O INTERESSE

Por força da nossa natureza humana, que não prima pela bondade, o interesse prevalece quase sempre sobre os afectos e não raramente sobre os princípios, e por isso, se queremos ter um SNS (que já foi dos melhores) que a todos sirva bem, arredemos os pressupostos madrigalescos e utópicos, de que os médicos são seres morais de topo, impolutos como a Santa Madre Teresa de Calcutá e de tal  grandeza de caracter, que barricados no seu ideal de servir e de tratar, resistirão estoicos, às lamúrias rancorosas dos filhos, descoroçoados, por o “papá” ser um pelintra.

Tais presunções só iludem os simples e beneficiam os que, sem um mínimo de honra ou de decência, pretendem alambazar-se nos despojos de um SNS destroçado, deixando os cidadãos de recursos parcos, encurralados pela doença e pela morte escusada, à míngua de quem os trate.

Os santos, quer na classe médica, quer na eclesiástica, são notoriamente escassos, e, se abundam os que jazem sob o lajedo dos templos ou esculpidos em pedra e em talha, suscitam-nos uma dúvida razoável quanto à sua santidade e quanto à sua proveniência de classe.

Para que o SNS volte a erguer-se, das ruínas esbarrondadas do que já foi, e a orgulhar-nos,  urge entupir e vedar todos os vasos comunicantes entre o privado e o público e canalizar para este, todos os recursos (que afinal jorram dos bolsos dos contribuintes num manancial crescente de esbulho) sendo de inteira justiça que sejam estes a beneficiar.

As clínicas e os hospitais privados, que se amanhem com as seguradoras, com as Misericórdias, com essa sanguessuga voraz em que se metamorfoseou a ADSE valendo-se da fragilidade e do medo dos velhos e da complacência cúmplice, do nosso Estado dito de direito, e enfim, com todos os” negociozinhos da doença” e os da morte, num futuro próximo. Os doentes que presumindo-o, e mal, que serão melhor tratados nas clínicas privadas, que as paguem ou que façam um seguro de saúde, que lhes comparticipe as bagatelas e que os descarte, quando a doença ou o conhecimento antecipado desta, pela devassa dos arquivos clínicos e não só, os alerte (aos seguros) para um prejuízo eminente…

Reerguer e dignificar as carreiras médicas, tornar meritório transpor-se o crivo de malhas estreitas que conduz aos internatos de especialidade nos hospitais públicos, contratar os médicos por concursos públicos dignos, diferentes das degenerescências, que se tornaram hábito desde a ultima década do século passado, desmoralizando e desmotivando muitos colegas entre os melhores, e, pagar bem aos que ingressarem nos quadros mas impondo-lhes a exclusividade, obstando assim, à mobilidade e à volubilidade dos interesses. O resto virá espontaneamente em pouco tempo e as clínicas privadas (excepto as de grande valia) depressa voltarão à insignificância, que as caracterizou durante o apogeu efémero do SNS. 

Se de facto o país está sem cheta, apesar das mordomias gritantes, é preciso poupar no supérfluo e não naquilo que é primordial para a maioria dos cidadãos, como um SNS a que todos possamos recorrer, com a certeza de ser bem tratados. É preciso por no seu lugar estes políticos profissionais que eleitos pelos partidos e pelo voto da maioria governam despudoradamente para servir os do costume, e se necessário for, amedronta-los, e a primeira despesa a abolir, é limitar o número de deputados, vereadores, etc., que alguns sem tugir nem mugir ou apresentar trabalho relevante em muitos anos, proliferam numa abundância de praga.

E acabar de vez com esses sorvedouros de euros que são as parcerias público-privadas.




João Miguel Nunes ”Rocha”
(artigo publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS  n.º203 •  dezembro 2019)