segunda-feira, 12 de março de 2018

CATADUPA ALARVE


A morte de neurónios cerebrais que todos os dias acontece contribui para a segunda infância dos velhos, que pasme-se: conservam a memória da história pregressa longínqua, pormenorizada e nítida, e, esquecem o que se passou há meia hora…

Ainda agora ocorreu-me numa associação atabalhoada de catadupa alarve, a história do lobo e do cordeiro, contada no livro de leitura da minha segunda classe, depois pensei na calamidade dos incêndios, na minha opinião maioritariamente ateados a mando dos “interesses”, e, nos cento e tal mortos em vão… e desta ideação saltei para a obrigação, pesadamente sancionada, de limpar os matos e não só, até 15 de Março impreterivelmente, não obstante os temporais, expondo a terra nua e os calhaus, à vista e à erosão, como nas paisagens mais desoladas de um planeta aterrador. Como se participasse numa “sessão espírita”, ouvi vinda de longe, a voz fanhosa, prepotente e odiosa da minha professora de Ciências-Naturais a explicar a função clorofilina e a sua estreita ligação ao verde das plantas, quer sejam cardos, giestas, estevas, silvas ou hortas mesmo que salpicadas com o vermelho dos tomates.

Agora, como que num flash de lucidez, ocorreu-me, vá-se lá saber porquê, se vamos importar o oxigénio da Alemanha ou se vamos compra-lo à Celulose do Caima, à Portucel ou à Industria do Fogo…

Será o Alzheimer? Ou será que atingimos um patamar de iniquidade tal, que tudo é lícito desde que sirva o Capital?


João Miguel Nunes” Rocha”

quarta-feira, 7 de março de 2018

La dona é mobile


Os gerontes que atinjam a vetusta idade da aposentação e, não tenham a boa ou a má sorte, de se finarem “in actu e in situ”, devem preparar-se para uma abalada suave, indolor e de motu próprio, porque neste admirável mundo novo globalizado, as leis que preconizam e favorecem a morte, prevalecem sobre as que protegem a vida (interrupção voluntária da gravidez, testamento vital, eutanásia, aplicação da pena de morte…) e aos velhos, untou-se e besuntou-se o declive ingreme, que sem arrimo ou corrimão, os privilegiados longevos, têm de descer.

Os ratos abandonam o barco que se afunda, muitas famílias cientes e ciosas do pedigree dos seus cachorros ou bichanos, abandonam o parente doente ou velho que se esvai, e os nossos grandes empresários que mercadejam com os comes e os mui honestos banqueiros que mercadejam sem princípios, dizem e são unânimes, que é preciso ir buscar mão-de-obra onde ela abunde e barateie, sem restrições de fronteiras que são coisas antiquadas que só favoreciam os contrabandistas e deste excesso de humanos, se aproveitem apenas os mais aptos e se deixem os que sobejam vegetar, até que se instalem no subsolo.
Nesta próspera evolução a mando do ”papá económico”, pai biológico de todos os poderes, paira, sobre todos os futuros individuais e colectivos da plebe trabalhadora, pensionista ou subsídio-dependente e também sobre os” potenciais pobres diabos ricos” que entregaram a gestão da sua reforma a fundos de investimento, a seguradoras, a bancos e a outras Donas.

Brancas…, a sombra terrível, da “volubilidade das regras na hora de pagar” porque todos os contratos novos têm entrelinhas ambíguas e miudinhas, que os anulam unilateralmente, caso os factos para que foram subscritos e pagos, aconteçam (Siresp, Saúde, Reforma…) e os contratos antigos que eram de boa e honesta redacção são crivados por leis retroactivas que lhes esbulham a eficácia, configurando uma ”falcatrua legal”.

O roubo por leis ao alvo, que marca o fim do Estado de Direito, iniciou-se no princípio da última década do século passado e dele foram vítimas preferenciais os do costume e com particular acutilância os médicos que trabalhando no SNS tinham (às vezes com perdas significativas) optado por subscreverem a CGA e a ADSE. Nesses tempos de vacas obesas, a necessitar da colocação de bandas gástricas, em que o dinheiro jorrava de Bruxelas numa abundância de engodo e de embuste, e o ordenado dos funcionários públicos passou a ser tributado, abriram e proliferaram,” num exagero à portuguesa” as clínicas de fuga ao Fisco, que por maroscas e cosméticas emagreciam o irc e menos eficazmente o irs (os ricos serviam-se de custos sumptuosos e de paraísos fiscais, os remediados faziam contas poupança-habitação, reforma e outras e os pobres pagavam e calavam). Estes esquemas nasceram de uma cumplicidade entre o governo e os bancos em que todos perdiam menos estes. E eis-nos na história da tanga e na pose graciosa do protagonista nas Lajes, sorrindo e mentindo, com desfaçatez vomitiva.
E a bolha imobiliária rebentou, e a conta na vez de ser imputada aos fautores usurários, passou para os cidadãos no ”drama/farsa do Resgate” e da honra, de não renegociar a dívida ou os juros da dívida.

E, como o dinheiro não se multiplica por cissiparidade como as células, nem Bruxelas no-lo dá, eis-nos chegados a um risonho presente apanágio de um encantador futuro, em que há um aumento diário da esperança de vida, para diminuir as reformas, a eutanásia para diminuir a velhice e os custos das terapêuticas, os incêndios para engordar os lóbis e esbulhar o pequeno proprietário da floresta e o ataque ao SNS para favorecer a indústria da doença… E, como nos contos de fadas mais lindos e mais utópicos, só os ricos adoecerão. Os pobres terão atingido enfim, um estado de boa saúde desde que nascem até à defunção.


João Miguel Nunes” Rocha”
(artigo publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS  n.º187 • Março 2018)