domingo, 12 de março de 2017

A HISTÓRIA PREGRESSA DOS GERONTES

O velho acordou sobressaltado e ainda estremunhado enrodilhou-se na cama como uma enorme orelha apontada, pronta a caçar qualquer ruído provindo do quarto do filho e da nora, mas tudo se fechara no silêncio opressivo das noites cálidas de verão no campo, que escutadas depois de se suster a respiração, despertam em mil sons miudinhos, quase no limiar da audição ao princípio, mas que num crescendo proporcional à nossa atenção, se desdobram e se definem em pios, roços, farfalhos, sibilos, roncos, estalidos, haustos, suspiros,… como se a noite se tivesse povoado e fervilhasse de duendes invisíveis atroando os ares, com os seus sons dispneicos e asmáticos…e, que revelam a actividade voraz dos seres miniaturais que connosco partilham todos os espaços do nosso mundo tridimensional  e de cuja existência nem sequer nos apercebemos na nossa pressa frenética, humana e inútil de não querer gastar tempo, acabamos por não o viver sequer, porque a realidade só existe e só nos roça, no lampejo do momento que passa, e se vai…

Ainda bem que acordara porque no seu pesadelo, vira-se a descer as escadas do Notário com os filhos e as noras, aos quais passara procuração irrevogável sobre todos os seus proventos e bens, passando a indigente… Não corria porém o risco de cometer tal erro, pois tivera um amigo que o fizera, e no próprio dia, fora trasladado de casa para um lar de terceira idade dos mais miseráveis, onde sorrateiramente o sedavam, para poupar na mão-de-obra e no “obrar” e se possível engulhar-lhe o apetite. Não durara porém muito o calvário do amigo, porque durante o “milagre económico”, ainda apregoado por certas almas penadas que por aí andam sem perceber que estão politicamente mortas, a família achando que ficaria muito mais barato manter o velho em casa com ração reduzida e em metabolismo basal e amanharem-se com a mensalidade do lar, foram dar com ele sentado na sua cadeirinha de plástico branco, mas já rígido e frio, como peixe na arca…

O funeral só não foi ”à marinheiro” com lona e lastro, ou uma cova num barrocal, porque a lei não o permite e o pune, mas foi cremado, que fica mais barato, embora também se não perceba que interesses pretende a Lei proteger, quando obriga a que o finado seja incinerado de mortalha e caixão, quando enfaixado num lençol em” múmia”, como as nossas enfermeiras tão bem fazem, manter-se-ia a moralidade e o decoro, gastar-se-ia menos e diminuir-se ia o efeito estufa, tão nefasto ao planeta.

Apesar da especialidade de oftalmologia com os seus aparelhos e técnicas, não ser das mais propícias à intimidade e atreitas ao desabafo em que se abre o coração, eis uma historia pregressa que ouvi muitas, muitas vezes e cujo desenlace foi quase sempre, a cadeirinha de plástico dum lar das Misericórdias ou dos Inválidos do Comércio, se privilegiados, mas muito pior, quase sempre, onde letárgicos porque deprimidos e ou sedados, olhavam sem necessidade de olhos, para um passado ainda próximo, mas já tão intangível e distante, como a juventude eterna ou o amor para sempre…

Podem existir netos, bisnetos, milhentos entes queridos, que nunca mais farão parte do quotidiano do velho, tão longe e inacessíveis, como se defuntos, e, causando-lhes mais dor do que se o estivessem de facto, porque à tristeza da ausência soma-se a amargura do abandono e do ostracismo.

Quer sejam santos ou pecadores, é neste mísero inferno que desaguam e são arrumados em camas estreitas e bem juntinhas, os nossos gerontes, quando um destino malévolo lhes abate a autonomia, ou são aliciados com engôdos, em que a simulação de ternura e a carência famélica dela, desempenham papeis primordiais, para que a presa se atole no lamaçal de ardis e fique refém, dos que ama… ou que amou…

À medida que divagava, na modorra em que flutuava desde que acordara, o torpor foi dando lugar ao estado vígil e de repente, com o sobressalto e a dor excruciante, de quem é ferroado por uma vespa ou picado por um lacrau, percebeu que não acordara de um pesadelo… e, que na véspera, cedera a sua tutela aos seus…
Entrou em profunda depressão, intercalada por acessos de raiva que lhe acordavam a moinha retro esternal da ”angor pectoris” quando uma ou outra das noras, lhe trazia a malga com a parca ração e o olhava, já não com o olhar terno e meloso do período de persuasão, mas com o desdém triunfante, de quem apanhou enfim, o detestado rato, e se delicia a vê-lo debater-se em vão.

Acresce aduzir, que caso se tratasse de um belga, era natural e até provável, que lhe fosse prescrita a eutanásia, como a solução que a todos contentaria: a família herdaria os bens e os tarecos e livrar-se-ia do tropeço, o estado pouparia no encargo e o velho seria definitivamente curado da sua depressão.

No nosso atrasado Portugal, a velhice escorre, desagua e atafulha os lares seniores e outros sítios secretos infernais, onde se morre de tristeza e se põem os velhotes a saltitar nas suas artroses e a bater palmas para as visitas importantes, numa pretensa alegria tonta, que faz doer o coração de quem vê e o tem. Em breve porém, evoluiremos como Bruxelas, para a civilização e o civismo plenos, a bem ou a mal, como está patente nas ameaças do ministro das finanças de um certo ”país dono”, ou nos vaticínios e premonições dum morto-vivo, que se tivesse direito a cognome, este seria o de “Terror do velhos e dos pobres diabos”.

Como geronte que discorda dos destinos supracitados e teme os que estão para vir, venho apelar à bondade (se a houver) e sugerir que se proceda à partida dos velhos, empanturrando-os de alegria, fornecendo-lhes as terapêuticas, os tónicos e um substrato capaz para se alambazarem. Aos perfeitos e/ ou refractários, proceda-se com a subtileza dos ”Bórgia” e não de maneira boçal e brutal.

João Miguel Nunes ”Rocha”
( Março de 2017)