terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Que Deus nos valha

Estrada parcialmente alcatroada, com enormes segmentos de terra batida, entre Furancungo e Tete. No “Unimog 404”descapotável, ao lado do condutor, esturrico sob o sol ardente e amaurótico.  As picas com a suas pontas de metal vão batendo no solo, numa cadência monótona e hipnótica de metrómano. Eu vou olhando as margens da picada, tentando enxergar a passarada, que se a vir, é sinal de que não há “turras” emboscados. Nunca tive tanto medo, nem sequer quando fui ferido, como nesse dia em que percorro pela última vez o caminho de Tete e do avião (Moatize) para Lourenço Marques, onde não há guerra. 

Agora mais de meio século depois, leio as notícias, incertas ainda, sobre o plano de vacinação português e, um medo gélido atenaza-me a alma, e, a noção de impotência é mil vezes pior do há cinquenta anos, em que jovem guerreiro, podia bater-me e debater-me com vigor. Hoje velho, já perto do fim funesto, posso protestar, gritar ou esbracejar inutilmente, como certamente aconteceu a muitos velhos nesta pandemia, mortos sem conseguirem que, alguém os ouvisse ou se importasse…

 Inicialmente queriam excluir todos os velhos da primeira linha de vacinação; Sendo porém de mau tom (depois da razia) e propenso a custar votos, deram uma meia volta dúbia, e agora, só o serão, os internados em lares, porque os outros (se doentes) serão incluídos num vasto e mal amanhado rol de maiores de 50 anos com co morbilidades como: insuficiência cardíaca, doença coronária, d.p.c.o. e insuficiência renal. É óbvio, mesmo para os leigos, que o tempo que medeia, entre os 50 anos e a velhice real, danifica os órgãos, e, faz brotar milhões de cruzes nos cemitérios; acresce que, em sentido lato, há uma diferença abissal, entre a gravidade dos doentes, nas patologias mencionadas:- de uma doença coronária por um ateroma localizado a uma doença de 3 vasos, multisegmentar, não susceptível de  tratamento angioplástico  por cateterismo ou colocação de bypass de enxerto  venoso(safenas), e, com infarto e necrose miocárdicos extensos, há décadas de vida de diferença, no prognóstico -. E quando 2 ou mesmo todos, estes grupos de patologias coexistem? Os doentes que procurem as prioridades vacinais no outro mundo, porque viver com muita idade e muitas doenças, é de muito gasto e de muito mau gosto. Só se pertencerem ao ramo sacrossanto da política é que se justifica o dispêndio, dada a imprescindibilidade de tal gente, não obstante, a sua abundância. 

Acresce que se impôs, que estes doentes prioritários, sejam vacinados nos centros de saúde e, é sabido que muitos milhares de portugueses não têm médico de família, grupo no qual me incluo, porque sou seguido no hospital de Santa Cruz, e só fui ao centro de saúde 3 vezes, 2 em anos em que houve vacina da gripe disponível, e outra, para tirar os agrafos da segunda intervenção ao desfibrilhador cardíaco no fim do ano passado e, não tenho médico atribuído, nem história clínica registada neste. Claro que se quisessem ser claros, publicariam uma lista com a ordem porque serão vacinados os cidadãos, embora não veja como ordenar as prioridades caso a caso, a não ser por um processo moroso e incompatível com a situação. Mas uma lista pública, mesmos com lacunas, seria de grande valia e bruniria a ambiguidade e obstaria às ultrapassagens e às cunhas. Ontem ouvi o doutor Francisco Ramos esclarecer que quem não tem médico de família terá de apresentar um relatório do seu médico assistente no centro de saúde; isto, como se cada pessoa, pudesse aceder ao seu médico (se o tiver) sempre que queira. Tal imposição, a manter-se, vai criar um longo e penoso calvário, sobretudo para os mais pobres e os mais incapacitados e originar um pantanal de influências.

Fico profundamente triste, por ver os velhos com mais de 75 anos (fora das instituições e dos lares) serem excluídos do acesso prioritário, para bem deles, pasme-se, o que não surpreenderá os cidadãos sérios e atentos, que têm assistido estarrecidos, à “partida” dos nossos gerontes. Das minhas cinco irmãs, duas, de 78 e de 80 anos não têm co morbilidades conhecidas, não beneficiando pois, de quaisquer prioridades.

Apraz-me constatar que a maior parte dos colegas que aparecem nos “media” são dignos representantes da” leges artis” e defendem os interesses dos velhos; É pena, que no grupo que gere a pandemia e no que tutela a saúde, haja bastas excepções.

Que Deus nos valha… se o houver.


João Miguel Nunes “Rocha”


Publicado na revista 207 da ordem dos médicos de outubro de 2020.