terça-feira, 21 de julho de 2015

O CERNE E O BORNE

 Os postulados sobre a” queda dos graves” (Galileu) só se aplicam no vazio. Fora do vácuo há elementos estruturais e conjunturais que alteram a velocidade com que se cai… Na farsa mal urdida e toscamente representada pelos governantes já em campanha, chamam-lhe retoma. Tenhamos a coragem de admitir que caímos ainda, e avassaladoramente, e que quando nos estatelarmos no fundo real, já não teremos pátria, e a nossa língua, a quinta mais falada no mundo, o que nos devia encher de orgulho, já talvez só raramente se ouça cá, substituída pelo alemão, pelo inglês e pelo chinês. Talvez ainda se fale português às escondidas, entre a criadagem e a “gentaça”, filhos segundos de um deus menor…

 Na escola pública de Campo de Ourique onde andei com a mesma professora da primeira à quarta classe, muitos dos meus condiscípulos andavam descalços. Quando nas férias grandes, ia para a casa da minha avó materna na Beira Baixa, e ao domingo tinha de ir à missa, impressionava-me que as pessoas espontaneamente (ou coagidas) se dispusessem da frente para trás conforme a sua posição social. Lá à frente os que tinham a sua cadeirinha e genuflexório privativos, cá atrás junto das pias de água benta, e de pé, famílias inteiras descalças, o que contrastava e contundia com a parábola muitas vezes pregada pelo senhor Prior, sobre as dificuldades opostas aos ricos, na sua entrada no reino do céu.

 O “terror” das pessoas não era a morte (pois contra esta, não há terror que valha), mas a doença, que se remediadas, as deixava pobres num ápice. Se pobres, tinham de padecer ao deus-dará, entrevadas socorrendo-se de mezinhas caseiras, à míngua de quem as socorresse, acossadas pelo medo e pelas limitações. Se pioravam vinha, não o médico mas o senhor prior, com os sacramentos da extrema-unção e a prédica declamada num tom de recitação, sobre o outro mundo e a bem-aventurança, com a cominação de que pela reza de missas póstumas, pré-pagas, se conseguia uma ascensão mais rápida entre o purgatório e o céu. Veio Abril, criou-se o SNS, e o direito a um tratamento condigno, a uma agonia acompanhada e mitigada deixaram de ser um sonho, uma utopia, enquanto o nosso SNS se posicionava entre os melhores do mundo…

 Sua Excelência que acolitada por multidões de secretários e seguranças, e que assim acoitado e protegido, chama piegas, aos cidadãos que o elegeram, por estes protestarem contra o embuste e contra o esbulho, irados pela fome que lhes grassa em casa, indignados pela vileza com que se reduziu a já parca e miserável ração dos pais, dos avós, do velhos, mostrou-nos mais uma vez a massa de que é feito, ao pôr-se contra um grande povo, berço da democracia, pátria de: Hipócrates de Sócrates, de Platão, de Pitágoras, de Aristóteles, de Homero... navegando nas nossas água  e bajulando abjectamente os algozes agiotas que nos humilham, que nos esbulham e que nos destroem.

 Que diferença há entre nós e os gregos para o senhor Primeiro Ministro, se afaste deles, amedrontado, como se padecessem de doença contagiosa e fatal? Mesmo que a nossa superação da crise fosse verdadeira e lhe coubesse todo o mérito, afigura-se-me acto pouco digno, este repúdio dos gregos, reiterado por “Sua Majestade Trina”, que secundando-o no avisou da “contazinha”… Que triste figura e que triste país!

 Mas o país afundou-se e move-se à deriva em águas já profundas:
 Apesar do aumento confiscatório dos impostos.
 Apesar do assalto aos funcionários públicos e aos reformados.
 Apesar da dupla e intolerável descriminação aos velhos beneficiários da ADSE, coagidos às quotas e à contribuição extraordinária de solidariedade.
 Apesar da abalada em massa dos jovens e dos menos jovens. 
Apesar da venda aos estrangeiros de tudo o que era público valioso e vital, inclusive a nossa cidadania a pessoas sem passado mas com dinheiro.

Apesar do encerramento de serviços essenciais enquanto as parcerias, as fundações, persistem e recebem o nosso dinheiro.
Resta-nos muito pouco, do pouco que sempre tivemos: um SNS mutilado, mas mesmo assim mil vezes melhor do que o que havia antes de Abril, uma TAP, em que nós patriotas nos revemos como se da nossa bandeira se tratasse; o pecúlio aforrado em vidas inteiras de trabalho e de privações… Para defendê-los, para impedir que esta gentinha no-los tire é na minha opinião lícito o recurso  a todas as formas de protesto e de resistência pacíficas e se não bastantes, à legítima defesa. É ao cerne destas questões e à renegociação da dívida antes que esta nos sufoque, que devemos ater-nos. As várias versões de Sua Excelência, quanto aos seus descontos, são do borne, pouco importantes (se comparados). Olhe-se a sua história pregressa… isso basta.

João Miguel Nunes “Rocha"
  (artigo publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS  n.º160 • Junho 2015)