sábado, 13 de junho de 2020

OS GERONTES E AS VAREJEIRAS

Como vão longe os tempos, em que garoto cria, que todos os crimes eram punidos neste mundo e no outro e, me parecia crível, que o inferno fosse um remorso eterno, uma angústia sem fim. Agora, incrédulo e ateu, creio numa “alma” humana eivada de recônditos, repletos de pulsões primevas, viçosas ainda e, prontas a vir à tona sob estimulação bastante expondo a besta, que há na natureza humana.
No nosso tão civilizado Portugal, que até integra a U.E., a morte é sempre assinalada pelo zumbir das varejeiras; estas moscas grandes de um verde metálico, põem os ovos nos cadáveres porque as suas larvas  glutonas, devoram  vorazmente a carne com o adocicado pútrido da decomposição  e não descriminam por idade ao contrário do que acontece com as varejeiras da comunicação social, que preferem um só cadáver cuja juventude cative audiências, às centenas e centenas de velhos aprisionados em lares, mortos criminosa e macabramente, por omissão de auxilio e, que padecem dias e dias, não só do sofrimento inerente ao Covid-19, mas de terror crescente, do terror-pânico e da angústia atroz de perceber, que ninguém os ama ou quer, que de outro modo se não pode explicar, a passividade, a indiferença, constatada nas famílias e na sociedade.
Não me choca que em condições extremas se dê primazia à juventude; acho até que deve ser assim. Mas que se deixem morrer os gerontes, só porque os homenzinhos da agiotagem, querem retomar o negócio das reformas, que os velhos goraram, não morrendo no dia da aposentação ou, ao redor! Que raio de horrível mutação se deu nos cidadãos, para que aceitem calados, que se deem milhares de milhões de euros aos bancos (BPP, BPN, BES, BANIF,CGD…) que esbulharam os depositantes e os contribuintes e se matem os nossos velhos, para poupar na malga de sopa e na côdea de pão, ou que se aceite passivamente, que os nossos sexagenários são novos de mais, para a reforma, mas demasiado velhos para ter direito, se necessário, à respiração assistida?
Se acreditasse nas boas intenções que subjazem à aprovação da Eutanásia e do Testamento Vital, eu próprio subscreveria a morte para o dia em que perdesse a autonomia, porque considero que não há desolação maior, destino mais aterrador, do que viver num dos nossos lares, ou sobrecarregar uma família que não nos quer, mas como estou convicto que o que se pretende é eliminar prematuramente os custos das terapêuticas e da velhice e, que a vida, qualquer que seja a nossa idade, desde que independentes, é melhor do que a morte… (o sol resplandecente de inverno, o sorriso de um neto, o esboço de uma carícia, um sonho lindo de que se acorda com pesar). Mas de que vale a minha opinião de velho, se está em plena marcha um meritório plano para acabar connosco. De facto, o mundo fica mais bonito sem velhos: tão trôpegos, tão feios, com o rosto enxameado de máculas e de nevos, de xantelasmas e de xantomas, com o pelo a migrar do cocuruto da cabeça para as orelhas e para outras zonas, de seu natural peladas, rugas cavadas, abissais, um papo alongado a desabar do mento para a fúrcula esternal… Na minha opinião, bastam meia dúzia de velhos para desfear qualquer jardim. Talvez porque, esta constatação seja corroborada, por muita gente, o Estado dá um benefício fiscal às famílias que escondam os seus velhos em lares, ao invés do que acontece, com as que os mantenham no seio familiar. É um subsídio justo e em nome da estética; se em prol desta, até os nossos jovens mocetões se depilam, se maquilham e exibem os seus músculos hormonais, como aceitar que aqueles (os velhos) andem por aí, a destoar?
As máscaras de inúteis e até contraproducentes, passaram a obrigatórias e fonte de coimas e negociatas… será que o são, nas salas de convívio, atabafadas e promíscuas dos lares?
E, sentiria ainda mais orgulho (que é grande) pelos meus colegas da frente de batalha, se os visse denunciarem todos os encobrimentos e se forçassem a publicação das estatísticas dos velhos, que no rol dos mortos por Covid-19, tiveram acesso a cuidados intensivos, a ventiladores ou até, a hospitalização.
Agora que a pandemia foi controlada, embora se não se perceba bem porquê, já que as mortes continuam, e, o número de infectados aumenta todos os dias, veem os danos colaterais da contazinha e, os que se compraziam com o facto de os defuntos serem quase exclusivamente velhos, vão gemer sob o azorrague dos ónus a cargo do pequeno e médio contribuinte como é natural e, uso ser. E eu, talvez devido à demência, penso: mais valia manter os velhos vivos até aos novecentos e sessenta e nove anos, como Matusalém…
Oeiras 15 de maio de 2020
João Miguel Nunes “Rocha”