sábado, 3 de janeiro de 2015

DÚVIDA PERSISTENTE

Vinha a remar do veleiro. Por um acidente fortuito há dois dias que não fazia a terapêutica; três impactes brutais na zona supero externa, infra clavicular, do hemitorax esquerdo. Estupidamente saltei do bote; um bom samaritano ajudou-me a sair da água e a deitar-me na sombra de uma traineira; alguém chamou o INEM. Levei o indicador à radial e senti o pulso numa taquicardia irregular, frenética…fechei os olhos, enquanto o tempo passava numa lentidão “lesmática” inversamente proporcional à minha ansiedade. Tive a certeza de que ía morrer ali, mas surpreendentemente, não fui invadido pelo terror-pânico, por pensamentos grandiloquentes ou por esse arrependimento fingido, tardio e egoísta com que se julga subornar Deus …mas eu, naquele momento que cria supremo, terminal, não sei por que raio, pensei na mulher de César…Por analogia ou antinomia ocorreu-me e divaguei sobre o teatro mediático a que nos é dado assistir, em que chama retoma ou até com uma desfaçatez arrepiante, que seria trágica se não fora ser tonta, milagre económico, a este declínio quotidiano, que sentimos na pele e no ar, na tristeza indelével que enforma e deforma os semblantes, no amarfanhado das posturas prenhes de desanimo e medo, na confiança e na esperança definitiva e inexoravelmente esbarrondadas. Tive tempo de sobra para pensar nisto e em muito mais, porque a ambulância pomposamente engalanada com as insígnias do INEM, chegou cerca de trinta e cinco minutos depois e nela vinham apenas dois bombeiros sem competência e sem autorização para administrar o que quer que fosse, como me informaram ao recusar-me o beta-bloqueante e até o pacote de açúcar que lhes pedi. Por ser escusado, obstei a que me levassem para a ambulância, ficando debaixo da traineira nos mais de quarenta e cinco minutos que tardou ainda, o verdadeiro INEM, uma médica e um enfermeiro, que ainda ali, me canalizaram uma veia em cada braço, me puseram uma máscara sobre a face e me administraram não sei o quê, porque perdi a consciência, que só recuperei já no hospital, numa sala com três ou quatro macas, separadas por biombos. De costas para mim, uma jovem médica, a quem me dirigi nestes termos: senhora doutora, sou seu colega e queria contar-lhe o que aconteceu; te calas, aqui tudo igual… numa dicção espanholada e num tom mil vezes mais rude do que o rei de Espanha a mandar calar Hugo Chavez…Por uma porta ao fundo viam-se passar e cirandar, médicos de bata branca. Foi em vão que tentei enxergar caras conhecidas porque os médicos no auge da carreira e do saber, com o intuito de se desmantelar o SNS para benefício dos do costume, são atirados para uma reforma precoce e esbulhada, por um Estado que sem direito e sem honra, se apoderou dos fundos contributivos, que lhe tinham sido confiados mas não eram seus, e agora como pessoa de má consciência e poucos escrúpulos, altera diariamente o que ontem fixou como definitivo…como lei. Como classificar esta atitude em tudo semelhante à de roubar o mealheiro com o pequeno pecúlio e a alegria a uma criança, ou a ceia a um velho; vil, miserável…

É tempo, de todos nós médicos e profissionais de saúde, percebermos que calar é colaborar, é ser-se cúmplice, com o que se está a passar no nosso país, e no que diz respeito à saúde ficar cientes, que todos os dias se cometem omissões criminosas, que conduzem a sofrimentos e sequelas desnecessárias e se morre e vão, estupidamente em vão…

Tal como aos habitantes das regiões limítrofes dos matadouros/crematórios, bastava o cheiro pestilencial que se evolava das chaminés dos fornos, enegrecia a atmosfera como um “fog” horrendo e maldito e se colava a tudo num “fartum” nauseabundo e peganhento que lhes dizia, que lhes gritava a verdade, que contudo fingiam ignorar… todos os profissionais de saúde no activo, sabem que se estão a passar na saúde, aqui e agora, factos em tudo desconformes não só com o juramento de Hipócrates, mas até com a decência humana, que contundem com a dignidade, a saúde e a vida de quem os sofre, e também de quem os pratica se tiver consciência, e denigrem o bom nome e a honra de quem os consente, e de quem conhecendo-os, se cala.
 É claro que os profissionais da saúde também têm famílias com bocas para alimentar e tal como sobre todos os seres humanos do nosso país, paira sobre eles, a terrível sombra de um futuro incerto, futuro de que são agora fautores com um papel muito importante, mas quase a chegar ao fim, e ao cair do pano, transitarão do “glamour” e do fulgor do palco para uns bastidores bafientos e tétricos, onde desempregados ou com um salário irrisório e sem direitos, e dispostos a tudo por cada vez menos, sentirão a nostalgia pungente do tempo em que tinham o poder de mudar as coisas…e para sempre o perderam.
 Admitamos como mera hipótese que o dinheiro fluindo a rodos de Bruxelas aquando da nossa adesão (anexação) aparentemente a eito e à toa, foi na verdade empregue do primeiro ao último cêntimo, seguindo minuciosamente a sageza do plano, cumpriu os desígnios e está a conduzir-nos avassaladoramente para o desenlace final: os fins previstos.
 Abdicação vil e não outorgada pelos cidadãos, da nossa soberania, porque só é independente quem tem o bastante para sobreviver, a não ser que se readopte essa arguta forma de existência, em que as necessidades diminuem, por cada vizinho que se caça e come.
Devastação da agricultura, abate da floresta, eucaliptização dos regadios, afundamento das pescas, arrasamento do tecido produtivo, venda por uma bagatela e sem a salvaguarda do interesse nacional, antes parecendo haver o propósito de o delir, de tudo o que era público, valioso e vital (POTUCEL, REN,GALP,EDP, CTT,ANA,TELECON…) AGUAS, TAP e SNS (operações em curso).
  Criação de infra estruturas (auto-estradas, vias rápidas) bifurcando-se como bissectrizes de ângulos já agudos, dividindo o interior do país em latifúndios, enquanto paradoxalmente (ou talvez não) se procede à sua desertificação, pela abalada em tropel das empresas empregadoras, e porque o poder eleito, todos os dias lhes tira, uma ou outra das estruturas, que lá fixavam as populações: centros de saúde, escolas, juntas de freguesia, hospitais, tribunais…talvez num futuro próximo se abra a caça aos poucos teimosos que persistam em ficar.
 Criação e desaproveitamento de uma geração de licenciados, que excepto os habituais, se repartem entre doutores frustrados em empregos desadequados e de pouca monta, pelos quais porém, competem ferozmente, para gáudio e benefício dos patrões, e, os que ousam emigrar e sem o apego à pátria do Manuel da Bouça, jamais voltarão…e os seus filhos serão estrangeiros….Acresce que a esta debandada dos jovens se incrementa intencionalmente a rarefacção da nossa população pelo ataque à natalidade patente: em todo o tipo de advertências às mulheres que tendo emprego persistam em ser mães; diminuição ou supressão de todas as ajudas pecuniárias ao jovem casal; mesmo o beneficio fiscal prometido pelo eleito, já em campanha, fede a mais um imposto verde.
Aberração de tirar os filhos à mãe que deixa de poder sustentá-los. Em vez de a ajudarem, atormentam-na, tirando-lhes os filhos.
Liberalização e aceitação social do aborto para além do razoável.
Aplauso e mediatização, não da liberdade, mas da promiscuidade sexual.
Esse desejo utópico e obsessivo de imortalidade, marcante em quase todos os seres humanos, prometido e explorado pelas religiões, cujo único lampejo real se vislumbra na transmissão dos genes, é talvez o que subjaz e consubstancia o amor do amantes e o amor dos pais e faz com que de ambos possam brotar gestos sublimes ou actos horrendos, e tocar ou ferir este primomovente, nesta época de famílias precárias e pais faíscas, vistos como fotópsias, entre sessões de computador, é abrir a caixa de Pandora de que parece ter já saído um poder perverso, materializado no Testamento Vital, lei malévola e aterradora, sugerindo por si só e fartamente o que aí vem: de que os cidadãos autorizem formalmente o seu próprio assassínio, porque aos futuros e únicos prestadores da saúde (Champalimaud, Melos, Cruz vermelha, E.S, seguradoras, chineses…) não convêm clientes que não possam pagar com mãos largas, os cuidados que entendam prestar-lhes ou facturar-lhes…Imagine-se a desolação, a angústia de perceber-se o esgar de desilusão ou até ódio, que perpassa na expressão do filho, do neto, do ente querido por se não ter subscrito o testamento vital, na repartição Notarial, onde o levaram com esse propósito. Imagine-se que somos nós. A seguir virá a eutanásia sempre no interesse”do nosso querido e infeliz concidadão “ e depois talvez se reintroduzam as”linhas de montagem da morte” há tão pouco tempo encerradas…
  Abate de toda a classe média por extorsão pura e dura do que esta aufere ou aforra, porque os “ senhores” que manejam os cordelinhos da bolsa do dinheiro, manipulam também a seu belo prazer, os cordelinhos que movem e animam estas marionetas que se acoitaram na politica, e sem decência e sem honra, vão jurando sem intenção de cumprir…Persistir na dúvida, apesar da evidencia, é na minha opinião uma estupidez crassa.  

               João Miguel Nunes “Rocha"
  (artigo publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS  n.º155 • Novembro /Dezembro 2014)