quarta-feira, 7 de junho de 2017

OS HOMENS ENCOLHIDOS


Os velhos e os doentes no limiar da outra vida ou (arredando dogmas, sonhos e utopias) a um passo, do “pó ao pó”, têm sobre os outros cidadãos a enorme vantagem de em breve serem acometidos por uma mudez definitiva e por uma frieza gelada, refractária e avessa aos lumes que ateiam os rastilhos dos rancores e das vinganças, além da notória decadência e fragilidade que em geral precede o fim, tolhendo-lhes a defesa e tornando-os os alvos preferenciais destes guerreiros que pejam e se acoitam nas elites e que se pelam por ir à luta sem dar a cara, ou arriscar o pelo, e, que sem um resquício de bondade ou de decência, desceram à vileza desalmada de associarem a abundância da velhice, ao afundamento do país e à deriva sem perspectivas dos jovens, criando de propósito, uma clivagem hostil de gerações que aduz à já mísera solidão dos velhos, uma barreira de antipatia glacial e de aversão, que dão azo, a todo o tipo de abusos: espancamentos dentro e fora do seio familiar, fome verdadeira, aprisionamento em enxovias que teriam aterrado Dante, e inspirado Satanás a redecorar as ”profundas”.

Que raio de mundo é este, que fervilha e medra à nossa volta, com livre trânsito perante a nossa complacência em que todos os dias vemos trucidados pelas elites os princípios mais básicos da equidade e a decência, que presumimo-lo, norteia a maior parte dos seres humanos. Estão a cortar-nos rentes as vias de saída ascendentes e as saídas descendentes que nos propõem são cada vez mais dúbias, tortuosas e tão ingremes que parecem insusceptíveis de desembocar na luz.

Tidos por néscios e prostibulários em Bruxelas e como meros pagadores de impostos e eventuais eleitores sugestionáveis, de raciocínio parco e lerdo, pelas nossos, que se de outro modo o fossemos, não nos viriam com as explicações inverosímeis, que espantam pela singeleza, que só podem advir do pouco empenho a que recorreram, mesmo aduzindo a pobreza neuronal implícita.

E, que raio de gente somos nós, que permitimos, que o ónus brutal do resgate, imposto pelos banqueiros a um governo “faz de conta” seja pago e repago pelos cidadãos, mesmo pelos que ironicamente nunca puderam abrir uma conta bancária, e a banca, na vez de gratidão, abra falência fraudulenta em catadupa, apoderando-se do pecúlio aforrado em vidas inteiras de trabalho e de privações e sob o pretexto vetusto, de uma credibilidade há muito finada, nos imponha o conto “do banco bom, banco mau” e respectivos encargos presentes e futuros, que outra coisa não é, do que troçarem de nós e amputarem-nos o futuro, amputação esta que deve ser tomada em sentido literal, se a eutanásia for aprovada, porque agora, que os poderosos e os estrangeiros, esgaravatam em tudo o que deveria ser, só público, vai iniciar-se uma época de terror e de selecção, de ”doente rico, doente pobre”…. Em que o doente rico só tem a temer as situações que tornem prevalecente a vontade dos herdeiros, e o doente pobre, acossado pelo sofrimento, olhado glacialmente e com enfado pelos seus, sentindo-se o encargo que realmente é, com a autoestima num pélago abissal, vai “às cavalitas do medo e da angústia” pegar “voluntariamente” no copinho de “cicuta” dado pelo simpático algoz de bata branca.

Nós, os médicos, vinculados pelo Juramento de Hipócrates, à exclusão da morte como tratamento, não devia-mos enfileirar nunca, na lista de pretendentes aos lugares de carrasco que isso não nos trará honra e mutilará para sempre a confiança dos doentes, mas denunciar, isso sim, a carência quase absoluta, de cuidados paliativos e continuados públicos, o que faz com que a eutanásia a “pedido do doente pobre” aqui e agora, (se aprovada) não seja uma opção mas a inexorável e única alternativa ao sofrimento… e, se por um momento que seja nos pusermos no lugar do outro, sentiremos como obrigação inadiável, exigirmos, a criação de cuidados paliativos a que todos sem excepção, possamos recorrer.

Que raio, nós que fomos pioneiros na abolição da pena de morte, vamos reintroduzi-la, para os deserdados…

Podemos não saber de quem é a mão que segura a batuta que rege a orquestra que marca o passo da nossa” dança macabra” em execução, mas temos olhos e percepção para enxergar os mandatários que mantêm há anos uma relação simbiótica ou parasitária com a coisa política, e que ao vir justificar-se mediaticamente, na vez de desenxovalhados saem encolhidos como a roupa de má qualidade ao ser lavada. E abundam na política como o caruncho na madeira afectada, ao dar sinal…


João Miguel Nunes ”Rocha”
(artigo publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS  n.º119 • Maio 2017)

domingo, 12 de março de 2017

A HISTÓRIA PREGRESSA DOS GERONTES

O velho acordou sobressaltado e ainda estremunhado enrodilhou-se na cama como uma enorme orelha apontada, pronta a caçar qualquer ruído provindo do quarto do filho e da nora, mas tudo se fechara no silêncio opressivo das noites cálidas de verão no campo, que escutadas depois de se suster a respiração, despertam em mil sons miudinhos, quase no limiar da audição ao princípio, mas que num crescendo proporcional à nossa atenção, se desdobram e se definem em pios, roços, farfalhos, sibilos, roncos, estalidos, haustos, suspiros,… como se a noite se tivesse povoado e fervilhasse de duendes invisíveis atroando os ares, com os seus sons dispneicos e asmáticos…e, que revelam a actividade voraz dos seres miniaturais que connosco partilham todos os espaços do nosso mundo tridimensional  e de cuja existência nem sequer nos apercebemos na nossa pressa frenética, humana e inútil de não querer gastar tempo, acabamos por não o viver sequer, porque a realidade só existe e só nos roça, no lampejo do momento que passa, e se vai…

Ainda bem que acordara porque no seu pesadelo, vira-se a descer as escadas do Notário com os filhos e as noras, aos quais passara procuração irrevogável sobre todos os seus proventos e bens, passando a indigente… Não corria porém o risco de cometer tal erro, pois tivera um amigo que o fizera, e no próprio dia, fora trasladado de casa para um lar de terceira idade dos mais miseráveis, onde sorrateiramente o sedavam, para poupar na mão-de-obra e no “obrar” e se possível engulhar-lhe o apetite. Não durara porém muito o calvário do amigo, porque durante o “milagre económico”, ainda apregoado por certas almas penadas que por aí andam sem perceber que estão politicamente mortas, a família achando que ficaria muito mais barato manter o velho em casa com ração reduzida e em metabolismo basal e amanharem-se com a mensalidade do lar, foram dar com ele sentado na sua cadeirinha de plástico branco, mas já rígido e frio, como peixe na arca…

O funeral só não foi ”à marinheiro” com lona e lastro, ou uma cova num barrocal, porque a lei não o permite e o pune, mas foi cremado, que fica mais barato, embora também se não perceba que interesses pretende a Lei proteger, quando obriga a que o finado seja incinerado de mortalha e caixão, quando enfaixado num lençol em” múmia”, como as nossas enfermeiras tão bem fazem, manter-se-ia a moralidade e o decoro, gastar-se-ia menos e diminuir-se ia o efeito estufa, tão nefasto ao planeta.

Apesar da especialidade de oftalmologia com os seus aparelhos e técnicas, não ser das mais propícias à intimidade e atreitas ao desabafo em que se abre o coração, eis uma historia pregressa que ouvi muitas, muitas vezes e cujo desenlace foi quase sempre, a cadeirinha de plástico dum lar das Misericórdias ou dos Inválidos do Comércio, se privilegiados, mas muito pior, quase sempre, onde letárgicos porque deprimidos e ou sedados, olhavam sem necessidade de olhos, para um passado ainda próximo, mas já tão intangível e distante, como a juventude eterna ou o amor para sempre…

Podem existir netos, bisnetos, milhentos entes queridos, que nunca mais farão parte do quotidiano do velho, tão longe e inacessíveis, como se defuntos, e, causando-lhes mais dor do que se o estivessem de facto, porque à tristeza da ausência soma-se a amargura do abandono e do ostracismo.

Quer sejam santos ou pecadores, é neste mísero inferno que desaguam e são arrumados em camas estreitas e bem juntinhas, os nossos gerontes, quando um destino malévolo lhes abate a autonomia, ou são aliciados com engôdos, em que a simulação de ternura e a carência famélica dela, desempenham papeis primordiais, para que a presa se atole no lamaçal de ardis e fique refém, dos que ama… ou que amou…

À medida que divagava, na modorra em que flutuava desde que acordara, o torpor foi dando lugar ao estado vígil e de repente, com o sobressalto e a dor excruciante, de quem é ferroado por uma vespa ou picado por um lacrau, percebeu que não acordara de um pesadelo… e, que na véspera, cedera a sua tutela aos seus…
Entrou em profunda depressão, intercalada por acessos de raiva que lhe acordavam a moinha retro esternal da ”angor pectoris” quando uma ou outra das noras, lhe trazia a malga com a parca ração e o olhava, já não com o olhar terno e meloso do período de persuasão, mas com o desdém triunfante, de quem apanhou enfim, o detestado rato, e se delicia a vê-lo debater-se em vão.

Acresce aduzir, que caso se tratasse de um belga, era natural e até provável, que lhe fosse prescrita a eutanásia, como a solução que a todos contentaria: a família herdaria os bens e os tarecos e livrar-se-ia do tropeço, o estado pouparia no encargo e o velho seria definitivamente curado da sua depressão.

No nosso atrasado Portugal, a velhice escorre, desagua e atafulha os lares seniores e outros sítios secretos infernais, onde se morre de tristeza e se põem os velhotes a saltitar nas suas artroses e a bater palmas para as visitas importantes, numa pretensa alegria tonta, que faz doer o coração de quem vê e o tem. Em breve porém, evoluiremos como Bruxelas, para a civilização e o civismo plenos, a bem ou a mal, como está patente nas ameaças do ministro das finanças de um certo ”país dono”, ou nos vaticínios e premonições dum morto-vivo, que se tivesse direito a cognome, este seria o de “Terror do velhos e dos pobres diabos”.

Como geronte que discorda dos destinos supracitados e teme os que estão para vir, venho apelar à bondade (se a houver) e sugerir que se proceda à partida dos velhos, empanturrando-os de alegria, fornecendo-lhes as terapêuticas, os tónicos e um substrato capaz para se alambazarem. Aos perfeitos e/ ou refractários, proceda-se com a subtileza dos ”Bórgia” e não de maneira boçal e brutal.

João Miguel Nunes ”Rocha”
( Março de 2017)

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O HOLOCAUSTO DOS ÓNUS

No Mar Mediterrâneo, perto das costas de Lampedusa, rentes à tona, entre destroços e imundícies reunidas no estofo das marés mortas, cadáveres ventrudos vogam nas correntes mansas, semelhantes a medusas enormes, gelatinosas e horrendas. Migrantes encurralados em redis, guardados por cães lobos e por lobisomens, lutam contra as privações, contra o medo e contra a angústia de um destino incerto…e contra o terror-pânico, da sua devolução ao demónio. Homens-bombas, fazem-se explodir em estilhas sangrentas, que se juntam aos corpos esquartejados das suas vítimas. Haverá neles apenas o desejo de fazer mal? Que enorme poder ou desvario, lhes serve de motivação e lhes dá ânimo!... Emigrantes, sobretudo de África e dos PALOP, tornam-se malquistos, por disputarem aos nossos, os empregos já de si escassos e permitirem aos patrões, permutarem salários parcos, por salários de miséria.

Por analogia, a nossa situação presente, traz-me à memória os romances de Ferreira de Castro:-rurais pobres, querendo tenazmente aumentar as suas courelas e mudar a sua sorte, eram aliciados pelos do costume, e para poder partir, empenhavam-se; chegados ao “ Eldorado,” nas entranhas e nos confins do sertão brasileiro, tinham de comprar, fiado e a preços exorbitantes, as ferramentas do trabalho e o sustento, contraindo uma dívida, que ia aumentando a cada safra, amarrando-os inexoravelmente a uma servidão sem grilhões, mas tão amarga, penosa e letal, como a escravatura nas minas de salitre ou nas galeras, da Roma Imperial. Os únicos que enriqueciam eram os “Nunes”, que mercadejavam com a miséria…

Como se lhes assemelha o nosso destino, depois de esbanjarmos a nossa soberania e abdicarmos da nossa moeda, para nos metermos nesta Europa, que não nos quer como iguais, mas como meros serviçais: restaurantes, turismo, sexo, mar, sol, aqui…e, nos países deles, licenciados de grande competência formados com o dinheiro dos seus pais e o dinheiro dos nossos impostos, ou mão-de-obra braçal, diferenciada, barata e descartável. Na minha opinião não há nada (ou muito pouco) de espontâneo nos ”media” e não é por acaso que se dá tanta importância à cozinha: urge apaparicar os nossos donos porque o nosso futuro é, de subserviência e de bandeja.

E, como pano de fundo, deste quotidiano que se vive há duas década, elites medíocres que se sucedem (um até começou de tanga, vestia já fato e gravata, quando posou nas Lajes para a galeria das aberrações e, ascendeu ao topo da banca, onde se jogam os destinos de povos e o saque do mundo), servindo de paus-mandados, ao poder oculto e maligno, que está a conduzir a Europa e o mundo para mais uma hecatombe, usando à tripa-forra três armas letais: a força da guerra, a força do medo e a imensa força do poder mediático, formatando opiniões e subvertendo indelevelmente as democracias.

Mesmo agora que esse senhor choramingas, que democrata, quis tornar todos os portugueses pedintes, e que parece desejar-nos mal, com as suas premonições lamurientas, tão a despropósito como uma carpideira pranteando-se fora dos funerais, foi arredado, e que o presidente da república, parece a antítese dessa “trindade” muralhada e intocável, vá-se lá saber por que virtudes ou méritos, e que foi, isso sim, um dos fautores do atoleiro onde nos enterrámos. O Presidente Marcelo ao contrário do seu antecessor, não mostra receio de contágio ao beijar cidadãs comuns ou medo de beber um copo, com o povo que o elegeu.

Goste-se ou não, é um facto.

Embora com a mudança política, haja já, quem ouse ter esperança, persiste envolvendo-nos como uma carapaça intangível e inexpugnável “a dívida e o serviço da dívida” tolhendo-nos qualquer movimento ou perspectiva de ascensão. É a vontade da” Europa Dona” granítica, inamovível e implacável, em relação aos fracos e cujos propósitos são inconceptíveis de outra interpretação: posse absoluta de Portugal, com o mínimo de ónus e com uma multiplicação dos úberes…

A prová-lo, há a verborreia que antecede a aprovação dos orçamentos por Bruxelas, e que apesar da facúndia, já todos sabemos de cor: - cortem nos salários, nas pensões (mesmo nas contributivas), na segurança social, na saúde, na despesa pública… aumentem-se os impostos e canalize-se o dinheiro do contribuinte para “salvar” os bancos falidos por falcatruas premeditadas e “salvos estes” urge vendê-los aos estrangeiros por preços patéticos etc, etc… Enfim, privatizar, entregando- nos, tudo o que seja lucrativo, e eliminar, por inútil, tudo que só sirva os contribuintes portugueses, sem render. É neste contexto e visando aumentar a ordenha, que se insinua e avulta, a premência de discutir e aprovar a eutanásia: - que importa que não existam cuidados paliativos públicos e acessíveis, se mesmo sem os haver, a fase terminal e fatal das doenças, já é tão cara…Proceda-se com discernimento e abrevie-se o sofrimento do infeliz (morte digna, precoce e baratinha), se for pobre, e, se for rico, mantenhamo-lo vivo o mais possível, não obstante a melancolia dos herdeiros… Até a Santa Casa da Misericórdia investiu já, nessa outra lotaria.

Que me perdoem, os colegas defensores, a tarouquice, (se o for) se, apesar das palavras bonitas mas vagas e de sentido lato, com que enfeitam a EUTANÁSIA como: autodeterminação, dignidade, pôr fim ao sofrimento do infeliz… eu só discirno e enxergo: - “ que só viva até ao fim, quem o puder pagar”.


Talvez o safanão que o mundo vai sentir com a eleição de Trump, tenha como efeito colateral benéfico, pregar um susto a esta gentinha das elites.


João Miguel Nunes ”Rocha”

(artigo publicado na revista 175 da Ordem dos Médicos de Dezembro de 2016)