sexta-feira, 17 de agosto de 2012

As fomes

Era meio-dia. O sol inclemente incidia verticalmente na savana sugando a humidade, crestando os verdes, gretando a terra, tisnando os incautos e os sem abrigo.

 No horizonte, o céu levantava-se da planura numa campânula azul-cobalto, iridescente que atabafava tudo. Predominavam os matizes ocres ferruginosos, amarelos fortes, e se se percorresse a paisagem com o olhar rente ao chão de vez em quando levava-se com uma chispa reflectida maldosamente pelos cristais de mica e quartzo dos calhaus magmáticos. O feldspato parecia impregnado de unto seboso, e não cegava. O bando de crianças acachapava-se de pé contra o tronco imenso do embondeiro, parecendo enormes sardaniscas contra a prumada de um muro. Fugiam à torreira, mas a essa hora, a árvore só dava uma sombra escassa e quente. Via-se que a tribo a que pertenciam já fora educada pelos brancos, provavelmente missionários e cantineiros, profissionais que penetraram em todos os recantos de África, uns vendendo a fé, os outros vendendo as capulanas, o álcool, as missangas e as quinquilharias, embelezando os felizardos por dentro e por fora, no corpo e na alma. Isso era evidente, porque apesar dos seus sete, oito anos, impúberes e sem malícia, todos traziam um pano de capulana de cores e padrões surpreendentemente bonitos, que seguros das saliências agudas das cristas ilíacas ântero-superiores, lhes desciam pelo abdómen tapando-lhes pudibundicamente as impudicícias, também essas feitas por Deus, por esse Deus, que elevava aos Céus ou condenava a um Inferno inexorável e infinito, no tempo e no sofrimento. Produtos últimos de uma selecção implacável, apesar de magros, todos tinham corpos belos com a musculatura bem definida como no Rouviére, e as meninas, só se distinguiam dos garotos, pela maior delicadeza das feições, e, pelo “adoçado” do olhar, trazendo à mente dos velhos cépticos como eu, a visão da flor que inebria e fascina, entontece e atrai o insecto, que acaba digerido na sua corola que se fecha. O Deus omnisciente que fez o céu e a terra, semeou o universo de armadilhas, talvez por na sua imensa sabedoria antever, que a aventura só o é, com a baforada adrenérgica do perigo, que o amor só floresce completamente com uma pitada de ciúme e que o êxito que se não alicerça em trabalho e esforço, acaba por ser decepcionante, até para quem o alcança. Mesmo nos períodos de menor abundância, como este, a vida é bela. Se no rio continuassem a existir poças de água a vida continuaria, uns dias mais, outros dias menos mas o bastante para se ser feliz, porque a felicidade, a alegria de viver, não dependem apenas do que possuímos de palpável, mas dependem também e sobretudo, da nossa confiança em nós e nos outros, e da nossa capacidade de sonhar. Os Porches, os Ferraris, não são componentes importantes da felicidade, são meros elementos de afirmação com que nos pavoneamos, uma carícia ao nosso ego, mas perfeitamente substituíveis por um outro “ter”, num mundo de valores relativos, de comparações…a vida é uma dádiva, constituída por um somatório de instantes, que se não podem adiar, e não gozados, passam na mesma inexoravelmente, e, para sempre se perdem na voragem do tempo. Por muito que a nossa megalomania nos erga e o negue, não passamos de cintilações no rolar dos milénios, de grãos ínfimos de poeira num universo de desertos, haja ou não haja Deus… Na desolação da savana no tempo quente, o grande perigo era a desnutrição proteica inerente à seca extrema. Havendo poças de água havia batráquios, insectos, larvas e tudo lhes servia como fonte de aminoácidos. Há dois anos a seca fora grande e a irmãzita do Bonáfu morrera…ao mesmo tempo que emagrecia o abdómen foi-lhe crescendo, crescendo, transformando-a num esqueletozinho barrigudo e disforme. Os lábios foram-se retraindo, retraindo, arrepanharam-se-lhes e o esmalte branco dos dentes alvejava constantemente, esboçando um sorriso de tristeza infinita, comovente. Ainda assim sorria quando a enterraram. Uma réstia de moedas de um dos muitos milhares de porta esmolas do Vaticano, um extra de um Ferrari de um VIP, uma raspa de ouro de um ricaço e milhares de crianças como a irmãzita do Bonáfu sobreviveriam à infância, cresceriam. Mas o Vaticano arrecada para Deus, que por força da sua omnipotência o não precisa, e os ricos são-no porque amealham, não por dar e a globalização é uma “grandessíssima” p… com as intimidades candidamente escondidas por rendinhas bordadas a “Lobbis e Cartéis” porque o nudismo é para os naturistas e outros que tais, e, os conhecimentos ancestrais e milenares ensinaram às damas “sábias e sabidas”, que esconder dando lugar a imaginação atiça o desejo, que exacerbado pelo manejo hábil de olhares lânguidos e lascivos e por vislumbres subliminares da “carninha pecadora” transformam o avaro num mãos largas, num perdulário, e, despertam o próprio velho, adormecido como a bela, ajudado à sua letargia pela próstata, pelas hormonas, pelo pudor…e claro, por enormes períodos refractários absolutos e relativos, que estes não são exclusivos do coração, aguilhoando-o com a ferroada da nostalgia de uma juventude que para sempre se foi, e, que nenhum Deus, que nenhum Céu, que nenhuma crença, nem sequer uma carrada de “Viagra” lhe devolverão jamais… A Juventude do macho não se consubstancia e reduz a um símbolo fálico, é muito mais, e, talvez a decadência que nos acompanha e progride na velhice seja um bem, uma forma de “delapidar o apreço” pela vida e de nos apaziguar com a morte, que nunca conseguiremos iludir, seja qual for a terapêutica rejuvenescedora que façamos, e de resulta quase sempre, uma triste réplica de nós próprios…é no número de mitoses das nossas células, no cúmulo de detritos intra e extra celulares inamovíveis e no jogo aleatório do acaso, que Ela se baseia, para marcar a nossa “hora”….

  Os negrinhos citados na sua ignorância inocente e juvenil não o sabiam, mas há muito que a globalização penetrou em África, minando-lhes o modo de vida, e o seu mundo, já tão parco e tão precário, talvez em breve se transforme numa lixeira radioactiva, onde imperarão a morte impútrida e a esterilidade de um planeta sem vida, desolador e medonho.

   Á mesma hora, nas grandes latitudes do norte, onde o gelo é eterno e a noite imensa, o casal de velhos saiu cabisbaixo do abrigo da família para a penumbra uivante, agreste e terrível.

   Andaram alguns passos sobre o gelo e quedaram-se desolados e abraçados. As lágrimas congelavam-se-lhes sobre as faces vitrificando-lhes as feições e nos trinta graus negativos da noite sem fim, em breve morreriam; mas tinha de ser, a comida escasseava, o socorro tardava e havia que tapar bocas e foram eles, os mais velhos, os escolhidos. Nada havia de maldade nesta sentença de morte ditada pelas circunstancias do clima impiedoso…a vida é um palito tirado à sorte, e eles tinham o maior, tinham de morrer, mas nunca mais ver este mundo gélido mas belo, cruel mas também terno, custava, custava muito; por isso choravam, o seu desespero e a sua angústia… que nem a certeza da morte rápida, conseguia atenuar…

    O seu mundo já fora afectado pela besta global, dissipando-lhes os recursos com pescas e caças que tudo dizimavam, com o aquecimento do efeito estufa…o ser humano é o grande predador de si mesmo…

     Na Europa civilizada de clima ameno, onde os maneirismos e os tiquezinhos, laboriosamente aprendidos, simulam a boa educação e dissimulam a nossa natureza impiedosa, boçal e brutal, a mulher jovem e linda, sonhava de olhos abertos com o Audi; de vez em quando o seu olhar perdia o “absorto onírico” e poisava langue, suave, aveludado e belo, num dos basbaques sentados na esplanada e se houvesse a conjunção de factos, de ter poisado num homem e deste ser heterossexual, logo ele entrava em transe hipnótico, ficando pasmado, de boca aberta, a olhar para a jovem embevecido, a babar-se cuspos espessos, o que prova conjuntamente, que Pavlov tinha razão e quão bonita era a nossa jovem , filha única de pequenos proprietários que viviam do amanho da terra  e que tiveram de fazer inúmeros  sacrifícios, para que ela pudesse estudar longe da terra onde nada havia .Estudara afincadamente fugindo da miséria, lidara com pessoas de outras ascendências sociais, invadira-a a ambição que transmuta a vida e atinge os sonhos.

   Quando saíra para o liceu e depois para a universidade, as idas a casa começaram a espaçar-se e a tornar-se mais breves e tinha de fazer um esforço para conter-se, para não mostrar aspereza, irritação, perante as perguntas insistentes dos pais tão cheias de interesse por ela, mas tão ingénuas e maçadoras, das suas carícias tão cheias de ternura, mas tão rudes, e que feitas por mãos, a que o trabalho conferira a textura de cavacos, tão ásperas, tão toscas, tão desagradáveis …

    O afastamento no espaço, no meio social e nas pretensões, foram carcomendo os sentimentos de ternura dela pelos pais, e, substituídos por uma frieza crescente, por uma noção de dever irritada e finalmente pela indiferença que atesta a extinção dos afectos. O ódio e o amor podem transmutar-se, mas a indiferença é um prenúncio do fim  irrevogável, definitivo…

   O Natal, esse período fingido, ataviado de logros e de rituais em que se imita a bondade, em arremedos que quase sempre descambam em piedadezinhas ostensivas, que vertem humilhações sobre os desvalidos e trazem o seu lucrozinho, aproximava-se e como sempre ía passa-lo com a família, a casa , que nessa altura se enchia de comidas de sabores  primitivos, pré-históricos, a que contudo não conseguia resistir; imaginou uma preparação histológica do seu próprio tecido adiposo, numa lamela observada ao microscópio depois do natal, com os lipócitos com as suas membranas lipo-proteicas estiraçadas pela abundância de untos intracelulares e estremeceu; ía engordar cem quilos…que gaita’…Recomeçou a pensar no Audi e na sua impossibilidade de o comprar. Quando os pais, já velhos, morressem, venderia a quinta….levantou-se num repelão assustada e assustando os sonhadores, arrancados em sobressalto, aos seus delírios insusceptíveis de aprovação Papal, e, surpreendendo os outros circunstantes.
   Chegou a casa ainda espavorida pela associação de ideias e foi telefonar aos pais, e, como quem se penitencia ou tenta apaziguar o destino, falou-lhes longamente, ameigando a voz, atemorizando-os duplamente, pelo tom meloso e pelo telefonema sem motivo, sem nenhum  pedidozinho. Estaria  doente...a sua filhinha?

  Era inteligente, trabalhadora, capaz , mas um certo rei  cujo reinado remontava à sua infância, perante o dinheiro a rôdos de Bruxelas investira em auto-estradas concessionadas eternamente a privados, em negociatas mais rentáveis que mil milhões de sortes  grandes,  e também tão afeiçoado à cultura, que no próprio dia da morte de Saramago anunciara mediática e lamentavelmente, que o escritor nunca lhe fora apresentado, num tom de desdém alindado de soberba, que só podem ser dignos de dó… Na minha opinião , tanta falta de vista transcende os órgãos da visão e subjaz nos latifúndios retroorbitários .

  Fazendo jus á memoria de alguns dos nossos melhores reis interessou-se pela agricultura e pelas pescas, que destruiu, fomentou a eucaliptização do país e abriu muitas, muitas universidades e para que não faltassem nem alunos nem doutores deixou que se estatuíssem limiares de dificuldade, díspares e disparatados, formando-se a eito pessoas de grande capacidade e outros que lêem, soletrando, como quem decifra enigmas de grande complexidade…Cortou-se assim cerce a única possibilidade, que os berço humilde, tinham de ascender por capacidade, porque desta fornada de licenciados e de mestres, é a piramidezinha, usada desde o nosso passado cavernoso , que determinará os eleitos.

   Assim a nossa jovem era inteligente e capaz, e ter tirado o curso de medicina com notas altíssimas provava-o, mas dizer que era boa, é outra conversa…Mesmo o ser humano mais bem formado tem de dissimular, de esconder cuidadosamente o que lhe vai na alma, porque esta é complexa, ancestral, e exposta á luz nua e crua, horrorizaria o próprio Satanás, que como é do conhecimento de todos, é um ser de coração duro, empedernido, difícil de chocar.

   Tudo em nós, seres humanos, todos os nossos anseios, se centram e concentram em nós próprios e todos os nossos movimentos se executam por força do nosso desejo de sobrevivência, do nosso egoísmo e do nosso desejo de sermos importantes, ou pelo menos de o sermos, a nível do nosso circulo de relações…Por isso mesmo, se a sorte grande tem de sair, que saia a um desconhecido e não a um amigo nosso, se alguém tem de ter grandes êxitos enquanto nós não passamos da cepa-torta, que não seja o nosso irmão.

    Se angustiados, sentimos a pulsão ansiosa de partilhar a nossa angústia, façamos como o barbeiro, que foi para o canavial gritar o seu enorme pasmo, por ter visto que o príncipe tinha orelhas de burro…

  Há quem procure nos padres, nos médicos, nos psicólogos e noutros profissionais ( bruxas ,videntes ,astrólogos, quiromantes) a ilusão de que alguém foi profundamente tocado pelo nosso caso, mas os profissionais calejados são os menos propensos aos  abalos da piedade: o médico conforta maquinalmente quando informa da doença, a extrema- unção e a missa de corpo presente, endureceram o padre, e a sua ladainha, as suas palavras de conforto nada significam para ele, são meros reflexos condicionados.

   A nossa jovem não sabia tudo isto, porque estas coisas só penetram na carapaça dos saberes, depois de termos vivido muito, talvez num breve “ocaso”, em que haja uma conjunção de sabedoria empírica com uma rarefacção neuronal, e os pensamentos, fluindo por circuitos menos labirínticos e complexos, conduzam a recônditos de luz….ou talvez seja apenas, ser-se velho e taralhouco. Foi por isso, que associar a morte dos pais á sua satisfação, a chocara tanto…

   Futuramente, se vivesse, aprenderia que o ser humano se adapta a todos os horrores e somos mais afligidos pela descrição brutal dos factos, do que por estes em si. A mulher que se dirige ao médico pela terceira vez do mesmo ano, da mesma vida, para ser submetida á interrupção voluntária da gravidez, ficaria estarrecida se lhe dissessem: hoje não podemos eliminar o seu filho por métodos farmacológicos; só se quiser submeter-se ao aborto mecânico, por raspagem e por sucção, o que significa esquartejar o seu bebé que já tem sistema nervoso central e periférico, e que até já chucha no dedinho, e claro, já sente dor, e, provavelmente medo…Estas palavras assim ditas, sem pinga de censura, suavizando-se até a voz, num tom pio e benevolente de seminarista, enchê-la-iam de raiva contra o médico, mas provavelmente não a demoveriam da sua resolução.

   O mesmo se passará em breve com os familiares que forem requerer a “interrupção da vida” do seu pai, do seu doente, do seu avozinho…fá-lo-ão sempre e só, no interesse do outro, não no deles, e, o mais espantoso, é que este esbater e adornar  da verdade com  “laivos de verbe,” funciona tão bem que a própria pessoa acredita no que diz , é sincera ao faze-lo.

   A nossa jovem não era rica nem sequer remediada, mas mesmo assim, tinha bem mais, do que a maior parte dos seres humanos e se passava fome fazia-o voluntariamente. Dantes a magreza extrema associava-se à fome negra dos pobres, à tísica, à caquexia terminal das neoplasias. Depois começou a associar-se o ideal de beleza a um esqueleto com mamas, ou a um jovem com as miudezas realçadas pela roupa e pela natureza ou pela roupa e pela estratégia….Foi o começo, da tão conhecida “anorexia nervosa “em cujo pico, o doente se deixa morrer de fome, num mundo de abundância cheio de untos, de presuntos e de guloseimas.

   Por trás da vidraça o velho professor espiava de um canto da janela a noite morna. As pupilas em midríase luziam com os raios incidentes reflectidos pelas retinas, acendendo-lhe os olhos como aos lobos. As luzes do bairro iam-se apagando com uma lentidão “lesmática” que aumentava o tempo; o velho tinha fome mas preferia morrer dela, a ser visto a vasculhar o lixo. A pensão de reforma há muito que acabara, comida a meio do mês, como acontecia sempre, apesar de ter abdicado da televisão, da medicação e de todos os gastos supérfluos. No estômago vazio a secreção cefálica de HCL, estimulada pelo “imaginar petiscos”, materializava-se numa moínha ardente entre o umbigo e o apêndice xifóide, exasperando-o…

   A última vez que esgaravatara o lixo, tivera imensa sorte: encontrara sete papossecos córneos mas sem bolor e conservando ainda o sabor bom a pão, uma dúzia de “jaquinzinhos” ressumando bom azeite, que algum penitente deitara fora, e para coroar toda esta fartura seis pastéis de nata ainda embalados, a que o azedo do leite, em vez de estragar, conferira, um delicioso sabor a queijadas…

    Já vivera bem e por sorte a casa que habitava era sua, sem o que teria de calcorrear as ruas. A mulher morrera-lhe há quatro anos, e o próprio “papa defuntos” da funerária, junto com “os meus sentidos pêsames” lhe entregara um impressozinho, com as obrigações pós fúnebres…Enfim as finanças caíram-lhe em cima e explicando-lhe que por ter mudado o sujeito passivo, a sua casa fora reavaliada pelas regras do C.I.M.I,(D.L 187-03) de que resultara um aumento de mil quinhentos e oitenta por cento, do I.M.I.; ainda tentou beneficiar da isenção temporária, alegando precisamente, que mudara o sujeito passivo, mas explicaram-lhe que para a isenção não…

    Ficara sem remédio a pagar de Imposto municipal sobre imóveis, da casa que habitava e era sua, imensamente mais do que auferia de quatro prédios de três andares de dois fogos, que possuía, de rendas congeladas desde os tempos escuros, apesar dos muitos galopes da inflação, tornando-as obsoletas, iníquas…

   Ei-lo, professor de liceu reformado no topo da carreira, auferindo a reforma acrescida da renda de quatro prédios de habitação, passando fome de rato, em tempo de vacas magras, famélicas…
Todos os meses, recebia uma intimação, para fazer obras num ou noutro dos seus apartamentos. Que se desmoronassem com os moradores dentro; obras, com que dinheiro? Mesmo que tivesse dinheiro, com as rendas que recebia, demoraria entre dezoito a vinte e seis séculos, a ressarcir-se do gasto…Nem mesmo a igreja podia pedir-lhe, que abdicasse de tanto do seu tempo a trabalhar para os inquilinos…O seu grande medo era que lhe penhorassem a reforma. A primeira vez que tal receio o acometera planeara agredir a autoridade que o viesse informar; munira-se até de um arrocho para o efeito. Seria preso, e na pior das hipóteses teria cama, televisão e três refeições por dia, coisas que agora não tinha, mas desde que ouvira falar de prisões domiciliarias, tinha verdadeiro terror de que o confinassem a casa e morresse, de tanta fome como se padecesse de anorexia, o que era completamente falso, porque em toda a sua vida não tivera um só dia de fastio, de fome sim, de falta de apetite, não.

        Os tempos de ditadura foram tempos de muitas arbitrariedades, de muita miséria, e de um fosso imenso entre os pobres e os ricos. Havia favorecidos, que os haverá sempre, mas o cancro da corrupção não se disseminara ainda em metástases, corroendo tudo. Cada um, era em grande parte condicionado pelo nascimento mas apesar de tudo, na opinião dele, nesse mundo, onde sem dúvida imperava mais a pobreza dos pés descalços e a fome que faz doer, havia na constância das leis, na honestidade das instituições, na permanência das regras quando chega a hora de pagar… e havia grande probabilidade de se morrer de morte natural, coisa que se lhe afigurava cada vez menos provável, no futuro.

   De manhã, deambulando pelas ruas, encontrara um velho companheiro do liceu que exercia medicina num hospital EPE. Ficara a saber que havia doentes de primeira e de segunda vezes, pagos pelo erário público a125 e a30 euros respectivamente. Como os doentes readquiriam a “virgindade assistencial” após um ano sem consultas no hospital, a “plastia do hímen,” era acarinhada pelos gestores, obviamente. Depois de se despedir, coisa curiosa, sentia evolar-se de si próprio um fedor rançoso…seria porque o amigo lhe dissera? Tu e eu, apesar da nossa magreza, não passamos de grandes lipócitos. Eu, cada vez que pratico um acto médico, quer o doente morra quer se salve, e mais ainda se o curar, estou a esbanjar bens públicos.

  Tu, que nada produzes e persistes em viver frustrando expectativas, és mesmo assim um “ónus adiposo”, menor do que eu, porque só oneras pelo que te “quiserem” dar, enquanto nós, funcionários públicos no activo, sobretudo os que produzindo, geramos mais despeza, somos o panículo adiposo que sobrecarrega o estado e impede o país de progredir.

  Os Institutos, as Fundações, os Grandes Empresários grudados ao Estado como carraças, mas alegando, sem corar, funções simbióticas, certos políticos reformados na  juventude ,etc,etc, são tudo músculos de boa fêvera, sem resquícios de lipum ,e, as parcerias público-privadas são diafragmas, que não só puxam e empurram, mas que nos fazem respirar. Enquanto aguardara a noite estivera a folhear um álbum de recortes de jornal que a sua falecida guardara; num deles, numa pose pomposa, inchados como a rã que queria ser boi, quatro homenzinhos sorriam para a posteridade que se a tiverem, só na galeria das aberrações…

      No largo imenso, os jovens e os velhos, as mulheres e as crianças amontoavam-se num enorme ajuntamento. Por trás das gentes a Morte surdira subtil, suave e sorrateira e esboçava um sorriso de ironia gélida. Os jovens olhando em frente para um futuro que lhes parecia imensurável, desafiavam todos os poderes do universo e diziam-se feitos á semelhança de um deus eterno…E a Morte, sorria impiedosa e gelada e desembainhava, empunhava e erguia a foice, com que degolava a alma dos homens, apagando-lhes todas as percepções passadas, presentes e futuras e mergulhando-os num “não ser”, negro, opaco, silencioso e vazio em que se decompunham e transmutavam, em biliões e biliões de átomos, que se juntavam aos outros átomos do universo, cada um com o seu núcleo e a sua girândola de electrões, como sistemas solares em miniatura…

 E, as torres gémeas desabaram. E, o polido Ocidente massacrou os povos, para os libertar dos ditadores. E,  Bin Laden foi morto, sem se calhar, ter vivido…

 E, as histórias que nos contavam na infância, eram fantásticas mas graciosas e todas terminavam com o utópico mas lindo: e foram felizes para sempre…E, as histórias que nos contam agora em sessões contínuas fastidiosas, são igualmente fantásticas, mas sem graça e terminam todas, com a ameaça da bancarrota, (que já aconteceu), visando criar um clima de terror propício, a que nos tirem o resto, sem contestações. O património estratégico de valor imenso, será cedido aos mandantes, por uma fracção irrisória do seu justo preço, e o S.N.S. será uma “parceria,” não vá o diabo tecê-las, e haver umas continhas a pagar.

  E, vou segredar às minhas filhas, que se quiserem enriquecer súbita e fulgurantemente, como muita gente de bem, explorem os cumes da atmosfera, lá, onde a gravidade hesita e deixa de puxar, porque obviamente, foi para lá que foram, os triliões dos pobres, esbulhados, e o dos ricos, que dizem, não os ter…

  E, os sábios que vão substituir os “transportes públicos” pelo TGV, que nos façam um ramal para Niendertal. É lá, que o futuro fará o seu festim canibalesco, farto em boa proteína, bem cada vez mais e escasso e caro, no nosso tão civilizado mundo ocidental…

                                                          
João Miguel Nunes Rocha
(artigo enviado para publicação em Agosto de 2012)

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Os génios do ambíguo

Eram quatro e tal da madrugada, hora em que os poderes malignos que nos espreitam da penumbra se tornam quase reais, hora em que nos hospitais e nos lares os moribundos capitulam e se deixam levar pela morte, hora enfim a que detesto acordar, porque a essa hora, o labor físico-químico do cérebro só gera pensamentos melancólicos, e, em que a própria alegria, se presente, parece dúbia e densa, como se acarretasse presságios de desgraça.

Sabendo por experiência própria que a essa hora, é preciso um rebanho infindo de carneiros para afugentar a espertina, comecei como quem os conta, a remoer o que sonhara.
Fora com uma parábola de Jesus Cristo em que ele diz: - Em verdade, em verdade vos digo, que é mais fácil a um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a um rico entrar no reino dos Céus. - Por capricho do fluxo sinuoso do pensamento onírico, associei (embora não haja nenhuma relação) política com riqueza, e de repente percebi, que na outra vida em que irei para o Céu quando sonho, porque quando acordado sou ateu, não iria encontrar políticos ou só políticos pobres e farroupilhas... Pensando que iria detestar esse Céu carente da eloquência dos nossos tribunos, presidentes de câmara e ministros... cheio de maltrapilhos e pés descalços, acordei banhado no suor gelado dos pesadelos piores, às quatro e tal da madrugada, hora em que os defuntos nos vêm assombrar e pé, ante pé, produzem crepitações e estalidos no madeirame do sobrados antigos como em criança acreditava e agora gostava de acreditar porque o pior de tudo, é o fim absoluto, o nunca mais ser, dos que não crêem...
Na minha recapitulação e interpretação do sonho, recordei a catequese que frequentara em garoto e nos evangelhos que mais tarde lera, e fiquei com quase a certeza que o espírito divino que inspirara os quatro evangelistas nas suas versões, não inspirara à menção do tamanho da agulha e do respectivo buraco, nem a uma especificação concreta e mensurável da riqueza no tempo e no espaço e que havia no omisso, um toque de génio, que criando uma ambiguidade permitia múltiplas arguições, inclusive o escancarar das portas do Céu aos mais ricos e opulentos, mesmo aos que adquiriram a riqueza (haverá muitos outros modos?) de forma facínora e rapace. Sem raciocínios profundos basta atermo-nos às regras da tabuada e ao conceito de saldo médio, para ver que todos chegamos ao limiar do além pobres como job ...ou mais ainda...
 Voltando e limitando-me às coisas terrenas há também por cá, um génio do ambíguo que é contratado pelas seguradoras na sua redacção das apólices, fazendo os segurados crer que andam a pagar a sua saúde, até perceberem que de facto andaram, no dia em que adoecerem; ou segurar a casa contra a gatunagem ou o fogo posto... Eu próprio já fui vítima dele; tem olhos de lupa na cara de Satanás onde assoma um resquício de malícia. Impingiu-me um seguro para navegação no veleiro com cláusulas múltiplas contra piratas, sendo-me posteriormente explicado pela seguradora num litígio, que
no conceito deles, o último pirata fora um inglês enforcado há cerca de dois séculos.
Nos tempos tenebrosos de escuridão não democrática os decretos-lei só regulavam para o futuro. Era o tempo dos governantes sovinas com as botas e com o erário público, que não recorriam aos génios que são ‹‹carotes››. É por isso que as alterações que andam a fazer às nossas reformas tresandam a marosca  porque o decreto-lei 498 de 72, que as estabelece e regula, não é de forma alguma ambíguo...
Penso que a contratação de génios do ambíguo para interpretar ou redigir decretos começou no princípio da última década do século passado.
Eram tempos de abundância. Formara-se um rio de dinheiro em Bruxelas que desaguava directamente cá, numa foz de mil braços e quinhentos deltas.
Todos os ‹‹iniciados››, que tinham conhecimentos ou contrataram um génio, tiveram a sua oportunidade de encher os cofres e reforçar a continha na Suíça...
Fizeram-se obras de muita monta e pouca serventia. Impermeabilizou-se o litoral do país, agredindo-se a natureza e mudando-se o clima. Criaram-se licenciaturas em áreas tão extraordinárias que se um dia tiverem aplicação, já o licenciado, há muito se finou...
Houve quem se deitasse pobre e acordasse mais rico que o rei Salomão, e, as respostas atabalhoadas e tartamudeantes que alguns deram geraram desconfianças mesquinhas... Mas eu que estudei lógica na filosofia do 3°ciclo do liceu sei a resposta: -Todos eles têm amigos, logo ali, fora do sistema solar, mas dentro da Via Láctea...
Trouxeram-lhes a fortuna em naves espaciais, o que explica a frequência dos OVNI; Mas os extraterrestres pediram-lhes segredo; São os melhores de entre nós, porque as suas respostas balbuciantes e ambíguas se devem afinal à sua nobreza de carácter, ao respeito pelo segredo a que sob palavra de honra se vincularam... É lamentável o modo como se podem deturpar as coisas animados pela inveja que entre nós campeia!
Nesse tempo de vacas com obesidade mórbida, com úberes das tetas a roçarem os calhaus dos pastos planos, não havia necessidade, pelo que é duplamente miserável, uma autêntica vilania, o que então fizeram aos ex-combatentes milicianos da guerra do Ultramar, que foram esbulhados da contagem do tempo (dada pelo ditador) em que arrancados à sua vida civil foram usados, como alvo e detonadores de minas na guerra... Foram-no pela Lei 30-C...De toda a nossa classe política apenas uma voz protestou contra esta extorsão e injustiça...Terá sempre a minha gratidão e o meu apreço apesar das várias recomendações que fez aos governantes, não terem sido acatadas.
Fizeram-se também umas alteraçõezinhas nas interpretações das carreiras médicas privando-se os colegas do acréscimo de contagem de tempo para efeitos de aposentação inerente ao regime de trabalho de 45 horas semanais, nos internatos geral e complementar.
Nasceu-me então o interesse pelas coisas políticas, que ultimamente se tornou uma paixão exaltada, muito imprópria da minha dignidade e vetustez. Sinto a «máxima» subir e dilatar-se, abalroando-me o endotélio das artérias, que sopram e latejam em protesto. Qualquer dia se insisto nesta minha mania de assistir à eloquência dos debates políticos do telejornal, rebenta-me alguma das intra-cranianas esguichando hemorragias, semeando-me o córtex de ilhas de estupidez entre os neurónios pensantes, já de si escassos e com uns danozitos isquémicos...
O sorriso ambíguo que uma mulher bem educada, pelo génio delas, sabe fazer quando o amado, com expressão basbaque, lhe exibe os redos abdominais, os psoas ilíacos e outras circunvizinhanças, merecia por si só, uma sub-especialidade de psiquiatria... É tão ambíguo, tão ambíguo, que pode ter o efeito devastador de uma arrochada fronto-temporal, ou paradoxalmente, prender mais do que um nó direito ou um lais de guia.
Muitos venderíamos a alma ao diabo (se o houvesse) para voltar atrás... mas a vida é efémera e o tempo só passa uma vez, numa voragem avassaladora que se perde na imensidão do espaço, lá longe, a milhões de anos-luz, numa explosão sublime e incomensurável de energia e luz.
É triste admitir a queda do nosso ídolo científico, pela inexorável evidência das coisas actuais. Ninguém no mundo da ciência me fascinava mais do que Albert Einstein. Servindo-se apenas de umas folhitas de papel, com o prodígio do seu génio, foi garatujando uns cálculos, formando umas equações e produziu a teoria que relativiza, relaciona e interliga, a massa e a energia, o espaço e o tempo (E = mc2).
Constato porém consternado que sobre o tempo tinha conhecimentos apenas razoáveis. Onde estão: - o tempo completo, o tempo completo prolongado de 45 e o de 42 horas, o
tempo que conta para a aposentação em quantidade igual a si mesmo. O tempo que acresce o tempo em 25% e contou até princípios de noventa e depois deixou de contar, o tempo que ainda acresce se se fizerem duas vezes os descontos para a C.G.A., e enfim para abreviar esta lista fastidiosa de enumerações, o tempo dos que já pagaram o tempo e tornaram a pagar o acréscimo de 25% do tempo e que nunca beneficiarão deles, pelas alterações das regras da aposentação...? Quem percebia mesmo de tempo era o senhor João de Deus, não o colega, nem o poeta, mas um funcionário da secretaria dos H.C.L., que por isso mesmo, penso eu, foi estrategicamente promovido e colocado na A.R.S. de Lisboa, de onde já deve ter fugido para a aposentação, para não ser penalizado no seu próprio tempo...Teve sorte; há quem por tanto saber tenha ido parar à cova escura de onde só se sai no Juízo-Final, segundo o dogma, e, um pouco mais tarde, na minha opinião... Há dias vi um documentário: - Algures em Africa um campo de refugiados com centenas de crianças, esqueletozinhos ainda vivos, com ascite e olhos esbugalhados de espanto e de horror, parecendo enormes ovos estrelados de gema escura, que se não fecham à invasão das moscas, nos rostozinhos já encaveirados pela morte próxima. Confesso que a seguir fui almoçar, talvez houvesse no meu subconsciente um desejo masoquista de auto-punição e quisesse danificar o endotélio e estreitar o lúmen da canalização arterial, com a enxurrada das LDL do bifinho, frito em colesterol, com que me fui empanturrar ... Penso que não... É a besta ambígua que há na natureza humana e que passei três décadas e tal, a ver na clínica, que desmesura e acrescenta tudo o que connosco se relaciona, e, mingua ou anula, tudo o que só aos outros dói... Talvez por isso cada vez gosto mais dos meus três cães e dos outros animais, incluindo os pequenos animais, que me hão-de (espero que daqui a muitos anos) tratar do cadáver e polir a ossatura, já que não pretendo subir ao céu por vias da cremação.

João Miguel Nunes Rocha
(Publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS • Julho/Agosto 2010)