quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Os génios do ambíguo

Eram quatro e tal da madrugada, hora em que os poderes malignos que nos espreitam da penumbra se tornam quase reais, hora em que nos hospitais e nos lares os moribundos capitulam e se deixam levar pela morte, hora enfim a que detesto acordar, porque a essa hora, o labor físico-químico do cérebro só gera pensamentos melancólicos, e, em que a própria alegria, se presente, parece dúbia e densa, como se acarretasse presságios de desgraça.

Sabendo por experiência própria que a essa hora, é preciso um rebanho infindo de carneiros para afugentar a espertina, comecei como quem os conta, a remoer o que sonhara.
Fora com uma parábola de Jesus Cristo em que ele diz: - Em verdade, em verdade vos digo, que é mais fácil a um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a um rico entrar no reino dos Céus. - Por capricho do fluxo sinuoso do pensamento onírico, associei (embora não haja nenhuma relação) política com riqueza, e de repente percebi, que na outra vida em que irei para o Céu quando sonho, porque quando acordado sou ateu, não iria encontrar políticos ou só políticos pobres e farroupilhas... Pensando que iria detestar esse Céu carente da eloquência dos nossos tribunos, presidentes de câmara e ministros... cheio de maltrapilhos e pés descalços, acordei banhado no suor gelado dos pesadelos piores, às quatro e tal da madrugada, hora em que os defuntos nos vêm assombrar e pé, ante pé, produzem crepitações e estalidos no madeirame do sobrados antigos como em criança acreditava e agora gostava de acreditar porque o pior de tudo, é o fim absoluto, o nunca mais ser, dos que não crêem...
Na minha recapitulação e interpretação do sonho, recordei a catequese que frequentara em garoto e nos evangelhos que mais tarde lera, e fiquei com quase a certeza que o espírito divino que inspirara os quatro evangelistas nas suas versões, não inspirara à menção do tamanho da agulha e do respectivo buraco, nem a uma especificação concreta e mensurável da riqueza no tempo e no espaço e que havia no omisso, um toque de génio, que criando uma ambiguidade permitia múltiplas arguições, inclusive o escancarar das portas do Céu aos mais ricos e opulentos, mesmo aos que adquiriram a riqueza (haverá muitos outros modos?) de forma facínora e rapace. Sem raciocínios profundos basta atermo-nos às regras da tabuada e ao conceito de saldo médio, para ver que todos chegamos ao limiar do além pobres como job ...ou mais ainda...
 Voltando e limitando-me às coisas terrenas há também por cá, um génio do ambíguo que é contratado pelas seguradoras na sua redacção das apólices, fazendo os segurados crer que andam a pagar a sua saúde, até perceberem que de facto andaram, no dia em que adoecerem; ou segurar a casa contra a gatunagem ou o fogo posto... Eu próprio já fui vítima dele; tem olhos de lupa na cara de Satanás onde assoma um resquício de malícia. Impingiu-me um seguro para navegação no veleiro com cláusulas múltiplas contra piratas, sendo-me posteriormente explicado pela seguradora num litígio, que
no conceito deles, o último pirata fora um inglês enforcado há cerca de dois séculos.
Nos tempos tenebrosos de escuridão não democrática os decretos-lei só regulavam para o futuro. Era o tempo dos governantes sovinas com as botas e com o erário público, que não recorriam aos génios que são ‹‹carotes››. É por isso que as alterações que andam a fazer às nossas reformas tresandam a marosca  porque o decreto-lei 498 de 72, que as estabelece e regula, não é de forma alguma ambíguo...
Penso que a contratação de génios do ambíguo para interpretar ou redigir decretos começou no princípio da última década do século passado.
Eram tempos de abundância. Formara-se um rio de dinheiro em Bruxelas que desaguava directamente cá, numa foz de mil braços e quinhentos deltas.
Todos os ‹‹iniciados››, que tinham conhecimentos ou contrataram um génio, tiveram a sua oportunidade de encher os cofres e reforçar a continha na Suíça...
Fizeram-se obras de muita monta e pouca serventia. Impermeabilizou-se o litoral do país, agredindo-se a natureza e mudando-se o clima. Criaram-se licenciaturas em áreas tão extraordinárias que se um dia tiverem aplicação, já o licenciado, há muito se finou...
Houve quem se deitasse pobre e acordasse mais rico que o rei Salomão, e, as respostas atabalhoadas e tartamudeantes que alguns deram geraram desconfianças mesquinhas... Mas eu que estudei lógica na filosofia do 3°ciclo do liceu sei a resposta: -Todos eles têm amigos, logo ali, fora do sistema solar, mas dentro da Via Láctea...
Trouxeram-lhes a fortuna em naves espaciais, o que explica a frequência dos OVNI; Mas os extraterrestres pediram-lhes segredo; São os melhores de entre nós, porque as suas respostas balbuciantes e ambíguas se devem afinal à sua nobreza de carácter, ao respeito pelo segredo a que sob palavra de honra se vincularam... É lamentável o modo como se podem deturpar as coisas animados pela inveja que entre nós campeia!
Nesse tempo de vacas com obesidade mórbida, com úberes das tetas a roçarem os calhaus dos pastos planos, não havia necessidade, pelo que é duplamente miserável, uma autêntica vilania, o que então fizeram aos ex-combatentes milicianos da guerra do Ultramar, que foram esbulhados da contagem do tempo (dada pelo ditador) em que arrancados à sua vida civil foram usados, como alvo e detonadores de minas na guerra... Foram-no pela Lei 30-C...De toda a nossa classe política apenas uma voz protestou contra esta extorsão e injustiça...Terá sempre a minha gratidão e o meu apreço apesar das várias recomendações que fez aos governantes, não terem sido acatadas.
Fizeram-se também umas alteraçõezinhas nas interpretações das carreiras médicas privando-se os colegas do acréscimo de contagem de tempo para efeitos de aposentação inerente ao regime de trabalho de 45 horas semanais, nos internatos geral e complementar.
Nasceu-me então o interesse pelas coisas políticas, que ultimamente se tornou uma paixão exaltada, muito imprópria da minha dignidade e vetustez. Sinto a «máxima» subir e dilatar-se, abalroando-me o endotélio das artérias, que sopram e latejam em protesto. Qualquer dia se insisto nesta minha mania de assistir à eloquência dos debates políticos do telejornal, rebenta-me alguma das intra-cranianas esguichando hemorragias, semeando-me o córtex de ilhas de estupidez entre os neurónios pensantes, já de si escassos e com uns danozitos isquémicos...
O sorriso ambíguo que uma mulher bem educada, pelo génio delas, sabe fazer quando o amado, com expressão basbaque, lhe exibe os redos abdominais, os psoas ilíacos e outras circunvizinhanças, merecia por si só, uma sub-especialidade de psiquiatria... É tão ambíguo, tão ambíguo, que pode ter o efeito devastador de uma arrochada fronto-temporal, ou paradoxalmente, prender mais do que um nó direito ou um lais de guia.
Muitos venderíamos a alma ao diabo (se o houvesse) para voltar atrás... mas a vida é efémera e o tempo só passa uma vez, numa voragem avassaladora que se perde na imensidão do espaço, lá longe, a milhões de anos-luz, numa explosão sublime e incomensurável de energia e luz.
É triste admitir a queda do nosso ídolo científico, pela inexorável evidência das coisas actuais. Ninguém no mundo da ciência me fascinava mais do que Albert Einstein. Servindo-se apenas de umas folhitas de papel, com o prodígio do seu génio, foi garatujando uns cálculos, formando umas equações e produziu a teoria que relativiza, relaciona e interliga, a massa e a energia, o espaço e o tempo (E = mc2).
Constato porém consternado que sobre o tempo tinha conhecimentos apenas razoáveis. Onde estão: - o tempo completo, o tempo completo prolongado de 45 e o de 42 horas, o
tempo que conta para a aposentação em quantidade igual a si mesmo. O tempo que acresce o tempo em 25% e contou até princípios de noventa e depois deixou de contar, o tempo que ainda acresce se se fizerem duas vezes os descontos para a C.G.A., e enfim para abreviar esta lista fastidiosa de enumerações, o tempo dos que já pagaram o tempo e tornaram a pagar o acréscimo de 25% do tempo e que nunca beneficiarão deles, pelas alterações das regras da aposentação...? Quem percebia mesmo de tempo era o senhor João de Deus, não o colega, nem o poeta, mas um funcionário da secretaria dos H.C.L., que por isso mesmo, penso eu, foi estrategicamente promovido e colocado na A.R.S. de Lisboa, de onde já deve ter fugido para a aposentação, para não ser penalizado no seu próprio tempo...Teve sorte; há quem por tanto saber tenha ido parar à cova escura de onde só se sai no Juízo-Final, segundo o dogma, e, um pouco mais tarde, na minha opinião... Há dias vi um documentário: - Algures em Africa um campo de refugiados com centenas de crianças, esqueletozinhos ainda vivos, com ascite e olhos esbugalhados de espanto e de horror, parecendo enormes ovos estrelados de gema escura, que se não fecham à invasão das moscas, nos rostozinhos já encaveirados pela morte próxima. Confesso que a seguir fui almoçar, talvez houvesse no meu subconsciente um desejo masoquista de auto-punição e quisesse danificar o endotélio e estreitar o lúmen da canalização arterial, com a enxurrada das LDL do bifinho, frito em colesterol, com que me fui empanturrar ... Penso que não... É a besta ambígua que há na natureza humana e que passei três décadas e tal, a ver na clínica, que desmesura e acrescenta tudo o que connosco se relaciona, e, mingua ou anula, tudo o que só aos outros dói... Talvez por isso cada vez gosto mais dos meus três cães e dos outros animais, incluindo os pequenos animais, que me hão-de (espero que daqui a muitos anos) tratar do cadáver e polir a ossatura, já que não pretendo subir ao céu por vias da cremação.

João Miguel Nunes Rocha
(Publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS • Julho/Agosto 2010)

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