quarta-feira, 20 de julho de 2016

A PANACEIA DOS CAÍDOS


O tempo corre perpetuamente numa voragem avassaladora, empurrando-nos para a defunção e puxando pelos vindouros num frenesim de renovação e de mudança, que goram e tornam ridículas, as nossas pretensões de importância ou de eternidade individual.

E, é a essa centelha de tempo em que “somos”, que sob o pretexto hipócrita de benquerença, de dignidade, de compaixão e de outras alarvidades, porque inadequadas, querem arrancar as fracções em que doentes ,dependentes ou velhos nos tornamos fontes de carregos e de despesas, como se a nossa vida de ”moirejo” nada valesse ou pesasse na balança das mais valias, e uma vez tornados improdutivos sob a perspectiva dos comerciantes armazenistas de mercearia e de bens não transaccionáveis, transaccionados, (que são os nossos empresários padrão): abrace-lhes o coval em terra benzida, porque não cometeram o pecado mortal do suicídio, fomos nós que os matámos, encurralando-os entre a eutanásia e o sofrimento não tratado e atroz, ou ,entre o testamento vital e o medo.

A extrema importância que damos à nossa ”vidazinha”, mesmo quando vazia de qualquer acto que a justifique ou valide, tem como contrapeso o pouco apreço que nos merecem as demais, quando não acresçam ou enriqueçam a nossa condição. E, com o passar inexorável do tempo, até os parentes mais próximos e os mais queridos, se tornam tropeços importunos, lerdos em desferrar da vida, e tardos em ocupar a sua condição mais duradoura e inócua, de retratos no álbum da família.

Já era assim no tempo em que os afectos se forjavam, floresciam e medravam, no convívio e na partilha, quanto mais agora que entre nós e os nossos descendentes, se abriu o abismo do mundo virtual, mais apelativo e real para os jovens e para os menos jovens, do qualquer afecto, e se instalou e cresceu desmesuradamente, a sanguessuga do consumismo compulsivo e frenético, que esbanja e deixa exangue, tão depressa, como a secção bilateral das jugulares.

Não tenhamos ilusões. Nós, os velhos, os doentes, os incapacitados, os dependentes, ou os que (como eu) se bastam a si próprios, enfim os acabados ou caídos, isto é, todos os que chegámos à recta mais ou menos comprida do fim, e, nos incluímos no role maioritário, dos que querem continuar a viver, temos de resistir-lhes. Não tiveram pejo em de ”motu próprio” e para adular Bruxelas, numa subserviência mísera de quem quer alvissaras, de alterar todos os contratos, esbulhando-nos a favor da Banca e dos Grandes Interesses, indiferentes à emaciação das famílias que deixaram de poder cear, à miséria dos velhos expulsos dos lares, ao tormento dos infelizes, que não chegando às terapêuticas, em vão fecharam os olhos, para não verem o gaudio aterrador da morte… Se os não mantivermos quedos pelo medo, único sentimento que os afecta e que respeitam, em breve nos alterarão drasticamente o prognóstico vital.

Impondo-se à razão, há um facto incontornável: enquanto não se criarem cuidados paliativos e continuados públicos, acessíveis e bastantes, a eutanásia e o testamento vital, nunca serão uma opção livre, mas uma cedência ao sofrimento ou ao pavor quimérico (encarniçamento terapêutico…), mesmo não havendo outras pressões, (e é tão fácil havê-las) intoleráveis, a condicionar a decisão…

Se os médicos aceitarem fazer o papel de algozes, perderão para sempre, o direito ao respeito e à confiança.

Nasci poucos anos depois do encerramento de Auschwitz e agora no “ultimo andamento” quase sempre “adágio” para os velhos, que na vez de prezados, são acusados de não morrer, antevejo novos campos e novos morticínios, mais hediondos ainda, porque perpetrados, não sob o ódio cego do fanatismo étnico, mas levados a cabo, com a frieza desalmada desta gente, que tem quase tudo e vai, comparar o valor de cada vida, com o custo da malga de sopa aguada, que a mantém.

As órbitas dos planetas são elípticas, as dos electrões circulares, nas grandes viagens oceânicas a distância mais curta entre dois pontos é uma linha de rumo curva, e o nosso principio e o nosso fim reencontram-se no pó, num perpétuo cirandar de vida e morte e de movimentos harmoniosos e encadeados…O que torna cada vida tão importante , é que é única e irrepetível. Um vindouro ou mesmo um clone, não seremos nós. Somo-lo ou fomo-lo uma só vez…

Que alguém, bem tratado, não submetido a pressões familiares, sociais, materiais, decida suicidar-se, aceita-se, que remédio, e raros serão, os que tendo ânimo, não possam fazê-lo, por falta de capacidade física.

Que um grupo de pessoas, juízes, médicos, enfermeiros, cidadãos comuns…. enfim qualquer que seja a eminência dessas personalidades, possa decidir sobre a validade da vida alheia, acho-o uma verdadeira aberração.

O sofrimento, a felicidade, o amor não se apreendem e entendem, por muito bem descritos que o possam ser, pelos poetas e pelos grandes escritores e, interpretados por quem os lê. Só se abarcam e sentem como vivências ou como recordações. E, por isso mesmo uma criança de dez anos criada por uma mãe madrasta, pode saber muito mais sobre sofrimento, do que um  juiz, um médico ou um jornalista sexagenários e felizardos, que sempre lidaram de perto com a dor dos outros, que obviamente não contagia… E, um doente moribundo, apaziguada a dor e acarinhado, pode sentir, que esse tempo inexoravelmente curto, valeu por toda a sua vida de “galego”.

Na minha opinião por detrás das palestras e dos debates sobre a eutanásia esvoaça num voejar impiedoso e funesto, a ave de rapina da ganância dos senhores do mundo. 

Coitadinho, é no seu interesse e será ele a decidi-lo. É, pois, uma questão de tempo, até ser  aprovada…Depois, num ápice, seguir-se- á a sub-rogação (não mandatada por estes) dos doentes pobres, dos velhos, dos incapazes…Para os ricos todas as terapêuticas possíveis e (se sonhadores) a crio conservação; para os pobres, a morte, com uma “ajudazinha” do carrasco…para evitar delongas e prevenir arrependimentos derradeiros…

Não há nenhuma doença, que torne indigno quem a padeça; indigna é esta gentinha e quem vendo-o, não se lhe opõe. O que acautelaram nos paraísos fiscais não os cevou; querem alambazar-se nos míseros despojos..

João Miguel Nunes ”Rocha”

(artigo publicado na revista 170 da Ordem dos Médicos de Junho de 2016)

domingo, 1 de maio de 2016

OS DOGMAS

Se já não acreditamos em moiras encantadas e encantadoras, em belas adormecidas e menos ainda em príncipes formosos que as despertam com um beijo, pródromo de uma felicidade que não se esboroa nem fenece, como explicar as crenças arreigadas, indiscutidas e aceites como dogmas: de que impelidos por uma dívida crescente e impagável, que nos descarna e que nos encova, atingiremos o planalto da prosperidade? 
Que os salários parcos e miseráveis pagos pelo labor presente, se devem, não à rapacidade dos ricos, mas à sua intenção sincera, de cheias as suas casas fortes, lhes escancararem as portas em torrentes de dádivas a distribuir a eito, pelos sobreviventes espartanos, rijos, estoicos e escassos, da fome e da míngua pregressas? Que, pasme-se, o dinheiro do contribuinte esfregado na honra dos bancos falidos, indelevelmente enxovalhada, pelas falcatruas dos donos, devolver-lhes-á a credibilidade e a candura imaculada das donzelas?

Será que a prédica que nos foi repetida desde a infância e antes de nós aos nossos pais e avós, com a persistência retumbante dos batuques, de que as dádivas ao Vaticano ou a Meca, a Jerusalém ou à Igreja Maná….creditar-nos-iam contas de grande rendibilidade num Céu sem inflação nos fragilizaram o córtex cerebral criando nele, zonas patológicas de grande permeabilidade ao fantástico, ao insólito e ao sobrenatural, o que até nos serviria de arrimo e de protecção contra o nosso medo mais aterrador, que é o da morte, como fim inexorável e absoluto, e permitir-nos- ia intermitências sonhadoras onde ora morremos, ora não…Não pretendo apoucar as crenças dos outros, que sinceramente respeito e invejo, nem sequer pôr em dúvida a possibilidade de um Deus criador; só que, para minha infelicidade não consigo aceitar, que Havendo-o, os homens, e menos ainda o seu ouro, lhe aproveitassem, e isso mina a minha credulidade em relação às religiões, e coloca-me entre os agnósticos nuns dias, e entre os ateus, nos demais. Na minha opinião, só por uma desmesurada megalomania nos podemos considerar feitos à semelhança e imagem de um Deus omnisciente e omnipotente, que algures, num dos estádios da nossa evolução biológica, nos dotou de alma e nos concedeu (ou à alma) o dom da imortalidade, transformando-nos em seus sósias humanos, ou quase…a nós que somos egocêntricos e egoístas, e, que só nos sentimos verdadeiramente chocados com os males alheios, quando há a possibilidade de nos acontecerem também. Admito, e não me considero excepção, que as vísceras expostas ou os corpos esquartejados (constantes dos telejornais) não me embotam o paladar ou engulham o apetite com que continuo a saborear o  farnel... Assumida esta minha insensibilidade de desalmado, por que será que me emociono e 
comovo ao ver os olhos imensos com imensas moscas das criancinhas negras, prestes a morrer de fome?...Ou sinto uma raiva avassaladora, uma raiva de querer esbofetear e morder, quando atino com um dos nossos muitos tribunos, que, acoitado no seu subsidio vitalício, passa as sessões parlamentares em jogos de: persegue, prende, mata, esfola; em
computadores saídos do erário publico, enquanto se urdem as leis para mais um esbulho… à já, mal cheia malga, dos velhos? A sistólica sobe-me em frémitos latejantes e suicidas, quando comparo a justiça que deixa em prisão domiciliária, (leia-se, com segurança pública), os gatunotes de gravata, e encafua nas prisões os pobres diabos, que sucumbiram à visão, dos tiques mandibulares dos filhos, acossados pela fome crónica.

O primeiro sobressalto de desilusão quanto à nova governação senti-o, não pelo derrube do” eleito”, nem pela coalizão à esquerda, mas pelo modo dogmático, pressuroso e dúbio, como se imputaram aos cidadãos contribuintes as contas do Banif, poupando mais uma vez os cidadãos sem abrigo. É imoral e inconstitucional; em nome da igualdade, se nada possuem, penhorem-se- lhes as camas/caixotes….

Desde que começou a história da tanga e das queixinhas lamuriosas sobre a governação precedente, que os velhos têm sido assaltados, em todos os seus direitos e não só se conseguiu a pretendida clivagem geracional como se inculcou em muitos um sentimento de culpa por continuarem a viver e em quase todos um sentimento de medo: medo de acorrer aos hospitais em casos de urgência; medo de levar à boca a garfada, numa casa em que o pão não abunde, mesmo que, o pouco que haja, sejam eles a paga-lo; medo de ouvirem da boca dos entes queridos frases que firam ou matem inexoravelmente os afectos; medo de serem tirados de perto dos seus e perpetuamente encafuados num mundo que lhes é estranho e hostil; medo de ouvirem dos que amam, mas que os não amam, frases tornadas prováveis, neste mundo sem dó: porque não subscreve a eutanásia ou o testamento vital?...

Talvez seja por ser velho, e eu próprio uma vitima potencial, que penso que há razões para ter medo.

De facto, num país onde a oferta de cuidados paliativos ou continuados a cidadãos pobres, é quase nula, é no mínimo desconforme e ilógico que se aceite que o Testamento vital ( e em breve a eutanásia) são a resultante de “ bem querer aos doentes”… e é muito, muito estranho que se aceite como vinculativa a decisão tomada há cinco anos, sabe-se lá em que contexto e sob que pressões ou desvarios para parar a terapêutica e o suporte de vida a um subscritor do testamento vital e simultaneamente se desrespeite a vontade lúcida da vitima de violência doméstica e se delate o caso, juntando em muitos casos, a um drama, um dédalo de outros dramas. Os médicos não deviam ser “Anúbis” de bata branca ou delatores…na minha opinião, claro.

Dez mil crianças, desapareceram num ápice e sem rasto, tragadas pela noite escura de breu; há honra em não renegociar a divida ou os seus juros, deixando perecer à míngua os nossos; os migrantes começam a ser desapossados do que é seu, e expulsos; há setenta e um anos encerou Auschwitz, onde milhões de infelizes entraram por seu pé, e tornados termicamente voláteis saíram em volutas fumarentas de átomos e moléculas, para sempre tão desumanizadas, como os seus carrascos. Que a história se não repita, porque nós os PIGS, não somos benquistos.

João Miguel Nunes ”Rocha”

(artigo publicado na revista 168 da Ordem dos Médicos de Abril 2016)