domingo, 1 de maio de 2016

OS DOGMAS

Se já não acreditamos em moiras encantadas e encantadoras, em belas adormecidas e menos ainda em príncipes formosos que as despertam com um beijo, pródromo de uma felicidade que não se esboroa nem fenece, como explicar as crenças arreigadas, indiscutidas e aceites como dogmas: de que impelidos por uma dívida crescente e impagável, que nos descarna e que nos encova, atingiremos o planalto da prosperidade? 
Que os salários parcos e miseráveis pagos pelo labor presente, se devem, não à rapacidade dos ricos, mas à sua intenção sincera, de cheias as suas casas fortes, lhes escancararem as portas em torrentes de dádivas a distribuir a eito, pelos sobreviventes espartanos, rijos, estoicos e escassos, da fome e da míngua pregressas? Que, pasme-se, o dinheiro do contribuinte esfregado na honra dos bancos falidos, indelevelmente enxovalhada, pelas falcatruas dos donos, devolver-lhes-á a credibilidade e a candura imaculada das donzelas?

Será que a prédica que nos foi repetida desde a infância e antes de nós aos nossos pais e avós, com a persistência retumbante dos batuques, de que as dádivas ao Vaticano ou a Meca, a Jerusalém ou à Igreja Maná….creditar-nos-iam contas de grande rendibilidade num Céu sem inflação nos fragilizaram o córtex cerebral criando nele, zonas patológicas de grande permeabilidade ao fantástico, ao insólito e ao sobrenatural, o que até nos serviria de arrimo e de protecção contra o nosso medo mais aterrador, que é o da morte, como fim inexorável e absoluto, e permitir-nos- ia intermitências sonhadoras onde ora morremos, ora não…Não pretendo apoucar as crenças dos outros, que sinceramente respeito e invejo, nem sequer pôr em dúvida a possibilidade de um Deus criador; só que, para minha infelicidade não consigo aceitar, que Havendo-o, os homens, e menos ainda o seu ouro, lhe aproveitassem, e isso mina a minha credulidade em relação às religiões, e coloca-me entre os agnósticos nuns dias, e entre os ateus, nos demais. Na minha opinião, só por uma desmesurada megalomania nos podemos considerar feitos à semelhança e imagem de um Deus omnisciente e omnipotente, que algures, num dos estádios da nossa evolução biológica, nos dotou de alma e nos concedeu (ou à alma) o dom da imortalidade, transformando-nos em seus sósias humanos, ou quase…a nós que somos egocêntricos e egoístas, e, que só nos sentimos verdadeiramente chocados com os males alheios, quando há a possibilidade de nos acontecerem também. Admito, e não me considero excepção, que as vísceras expostas ou os corpos esquartejados (constantes dos telejornais) não me embotam o paladar ou engulham o apetite com que continuo a saborear o  farnel... Assumida esta minha insensibilidade de desalmado, por que será que me emociono e 
comovo ao ver os olhos imensos com imensas moscas das criancinhas negras, prestes a morrer de fome?...Ou sinto uma raiva avassaladora, uma raiva de querer esbofetear e morder, quando atino com um dos nossos muitos tribunos, que, acoitado no seu subsidio vitalício, passa as sessões parlamentares em jogos de: persegue, prende, mata, esfola; em
computadores saídos do erário publico, enquanto se urdem as leis para mais um esbulho… à já, mal cheia malga, dos velhos? A sistólica sobe-me em frémitos latejantes e suicidas, quando comparo a justiça que deixa em prisão domiciliária, (leia-se, com segurança pública), os gatunotes de gravata, e encafua nas prisões os pobres diabos, que sucumbiram à visão, dos tiques mandibulares dos filhos, acossados pela fome crónica.

O primeiro sobressalto de desilusão quanto à nova governação senti-o, não pelo derrube do” eleito”, nem pela coalizão à esquerda, mas pelo modo dogmático, pressuroso e dúbio, como se imputaram aos cidadãos contribuintes as contas do Banif, poupando mais uma vez os cidadãos sem abrigo. É imoral e inconstitucional; em nome da igualdade, se nada possuem, penhorem-se- lhes as camas/caixotes….

Desde que começou a história da tanga e das queixinhas lamuriosas sobre a governação precedente, que os velhos têm sido assaltados, em todos os seus direitos e não só se conseguiu a pretendida clivagem geracional como se inculcou em muitos um sentimento de culpa por continuarem a viver e em quase todos um sentimento de medo: medo de acorrer aos hospitais em casos de urgência; medo de levar à boca a garfada, numa casa em que o pão não abunde, mesmo que, o pouco que haja, sejam eles a paga-lo; medo de ouvirem da boca dos entes queridos frases que firam ou matem inexoravelmente os afectos; medo de serem tirados de perto dos seus e perpetuamente encafuados num mundo que lhes é estranho e hostil; medo de ouvirem dos que amam, mas que os não amam, frases tornadas prováveis, neste mundo sem dó: porque não subscreve a eutanásia ou o testamento vital?...

Talvez seja por ser velho, e eu próprio uma vitima potencial, que penso que há razões para ter medo.

De facto, num país onde a oferta de cuidados paliativos ou continuados a cidadãos pobres, é quase nula, é no mínimo desconforme e ilógico que se aceite que o Testamento vital ( e em breve a eutanásia) são a resultante de “ bem querer aos doentes”… e é muito, muito estranho que se aceite como vinculativa a decisão tomada há cinco anos, sabe-se lá em que contexto e sob que pressões ou desvarios para parar a terapêutica e o suporte de vida a um subscritor do testamento vital e simultaneamente se desrespeite a vontade lúcida da vitima de violência doméstica e se delate o caso, juntando em muitos casos, a um drama, um dédalo de outros dramas. Os médicos não deviam ser “Anúbis” de bata branca ou delatores…na minha opinião, claro.

Dez mil crianças, desapareceram num ápice e sem rasto, tragadas pela noite escura de breu; há honra em não renegociar a divida ou os seus juros, deixando perecer à míngua os nossos; os migrantes começam a ser desapossados do que é seu, e expulsos; há setenta e um anos encerou Auschwitz, onde milhões de infelizes entraram por seu pé, e tornados termicamente voláteis saíram em volutas fumarentas de átomos e moléculas, para sempre tão desumanizadas, como os seus carrascos. Que a história se não repita, porque nós os PIGS, não somos benquistos.

João Miguel Nunes ”Rocha”

(artigo publicado na revista 168 da Ordem dos Médicos de Abril 2016)

1 comentário:

  1. estou em total consonância, e mais me arrepia esta gente do abrilada que tudo usurpou em nome da democracia e da fraternidade 'até o próprio Deus se interroga na humanidade esquecida no tempo.

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