quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A VANTAGEM DAS EPIFORAS

O cume da miséria, dos pobres diabos reais ou potenciais que todos somos, pode cheirar a desinfectante e a formol  nos sítios civilizados onde se procede civilizadamente  à  aplicação da pena de morte, à eutanásia ou ao extermínio de seres humanos. Emanar o odor adocicado e repulsivo dos corpos em decomposição impestando a maresia nos “morredouros” à volta de Lampedusa. Ser inodora e até de um pitoresco idílico, nas sanzalas de palhotas de África e materializar-se na aparição macabra de um esqueletozinho que nos fita com  os seus olhos desmesuradamente abertos e medonhamente tristes fazendo-nos descrer da bondade. Feder a  suor, a fezes, a urina empenicada e a medo, sim porque o medo tresanda, nos antros miseráveis do mundo ocidental. Ser perfumada, e até de tal beleza, fragrância e encanto, que o incauto velho, libertino e folgazão, dá por si a invejar Fausto e a sua danação, e nem sequer dá por ela, que no entanto subjaz horrenda, nos bordéis de escravas. Não ser sequer real, mas mesmo assim mais avassaladora e pungente  que as precedentes, quando descrita com o talento sublime de um Dostoiewsky, que nos deixa cabisbaixos e  acabrunhados de comoção. Ser inerrarrável, aterradora, apanágio de um futuro que nos preparam, e malogradas ou de escasso  exito que foram, as armadilhas montadas no caminho, por vezes  longo, da morte natural (Testamento Vital....) nos querem agora impôr, com o fito inicial e imutável de gastarem menos e arrecadarem mais, explicando-nos maldosa e atabalhoadamente que a “BOA MORTE” é em casa junto dos entes queridos. Este: vem, disse a aranha à mosca...visa preparar o terreno para coagir as famìlias, a aceitar e a cuidar do seu doente terminal. Mesmo os nazis nos seus campos / matadouros, só arrancavam os dentes de ouro, depois de terem anestesiado os portadores com Cyclon B... Esta “gentinha” quer esgaravatar nas entranhas dos vivos, que vão morrer, que somos todos.
Vão arguir flexuosa e despudoradamente, invocando o superior e prevalecente interesse do doente, num arremedo boçal de compaixão  pleno de impiedade, e sugestionados os cidadãos pelo martelar mediático, vão legislar para estabelecer  a obrigação com base no vínculo parental  em  sentido  lato, arredando como sujectivos e pouco importantes, os laços de afecto, as condições materiais e logísticas...a vida real... É  claro, que os seres rapaces que seguram e orientam a mão do legislador, escapam ao âmbito de qualquer lei, mas mesmo que por milagre esta se lhes aplicasse, fácil lhes seria isolar o seu doente, num recôndito  dos seus palacetes e só lhe aparecer, quando dispostos, arvorando uma expressão carinhosa, adequada  e proporcional ao seu “interessezinho”, ou então treslada-lo, sem que isso parecesse mal, para uma dessas instituíções de cuidados paliativos ou continuados privadas, cujo preço deixa boquiaberto e calado de espanto qualquer potencial  má-lingua e prova sobejamente quanto o doente lhes é caro. Excluídos, por se lhes não aplicar, os do costume, restam como destinatários da lei, os pobres e a classe média depauperada, pelos assaltos fiscal e semelhantes.
 Algures, transcendendo o egoísmo que forja  e subjaz aos afectos humanos, volita o amor dos pais e o amor dos amantes durante a fase fugaz do embeiçamento. Exceptuando-os, não há no mundo amor bastante, para que se deseje partilhar as nossas quase sempre pequenas casas, com um  doente terminal  de carne e osso que luta e que geme, que sofre e que o demonstra, que urina e que defeca e que precisa de auxilio constante  para quase tudo, às vezes até para escarrar a expectoração viscosa que se lhe gruda aos brônquios e lhos estenosa e entope numa troada dispneica de roncos e de síbilos, e que lhe cianosa a pele, como livôres cadavéricos temporões... Esta respiração penosa, este sofrimento visível e indizível, esta agonia, tornam o ambiente lúgubre e medonho, e lá no fundo,(porque não admiti-lo?) fazem desejar um desenlace rápido, ao princípio como pensamento insidioso e malsão repelido com pudor e pressa, mas que depois se instala e permanece como um desejo sôfrego como os regressados à tona, depois de uma longa apneia, aspiram pelo ar... e o doente agarrando-se tenazmente à vida que lhe foge, querendo viver qualquer que seja o seu estado, com os sentidos aguçados pelo medo e pela angústia desse fim do mundo que é a morte para cada um, percebe o ar tôrvo dos tratadores, decifra-lhes os pensamentos íntimos, e ao seu sofrimento aduz-se e acresce-lho, um ressentimento amargo pelos que ainda  há pouco lhe eram queridos, e estes, os tratadores, também eles padecentes, são invadidos por uma ambivalência em que o rancor carcome e substitui a piedade, a  benquerença e a ternura.

A agonia assistida e mitigada por profissionais, médicos, enfermeiros, auxilares de acção médica,cujos ofícios incluem a morte, é diferente e o doente  é tratado com eficácia e sem nojo, e sem sentir que o estão a empurrar para onde a existência, passa ao domínio do utópico e a ser regida pela  Lei de Lavoisier.
É evidente que não sou contra a morte no seio da família se houver condições e conjunção de vontades. Acresce referir e reiterar, que nada nas leis vigentes o impede, pelo que obviamente, o que se pretende, é impô-la.
Há muito que esta gente da governação se vendeu e nos vendeu aos ricaços, e a democracia de efémera que foi, há muito que se tornou uma plutocracia onde  tudo é manipulado (talvez até haja mensagens subliminares, impondo-se à vontade) para benefício dos ”poderosos dos cifrões”.. . Até a carência gritante de cuidados  paliativos e continuados  públicos, ou a mutilação do SNS, visa encher-lhes o papo.

Sendo as epiforas um tipo de lágrimas, que não exigem, para que corram abudantes, emoção, comoção ou suco de cebola, recomendam-se....

João Miguel Nunes “Rocha

(artigo publicado na revista 163 da Ordem do MÉDICOS de Outubro 2015)


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