O cume da miséria, dos pobres diabos reais ou potenciais que
todos somos, pode cheirar a desinfectante e a formol nos sítios civilizados onde se procede
civilizadamente à aplicação da pena de morte, à eutanásia ou
ao extermínio de seres humanos. Emanar o odor adocicado e repulsivo dos corpos
em decomposição impestando a maresia nos “morredouros” à volta de Lampedusa. Ser
inodora e até de um pitoresco idílico, nas sanzalas de palhotas de África e
materializar-se na aparição macabra de um esqueletozinho que nos fita com os seus olhos desmesuradamente abertos e
medonhamente tristes fazendo-nos descrer da bondade. Feder a suor, a fezes, a urina empenicada e a medo,
sim porque o medo tresanda, nos antros miseráveis do mundo ocidental. Ser
perfumada, e até de tal beleza, fragrância e encanto, que o incauto velho,
libertino e folgazão, dá por si a invejar Fausto e a sua danação, e nem sequer
dá por ela, que no entanto subjaz horrenda, nos bordéis de escravas. Não ser
sequer real, mas mesmo assim mais avassaladora e pungente que as precedentes, quando descrita com o
talento sublime de um Dostoiewsky, que nos deixa cabisbaixos e acabrunhados de comoção. Ser inerrarrável, aterradora,
apanágio de um futuro que nos preparam, e malogradas ou de escasso exito que foram, as armadilhas montadas no
caminho, por vezes longo, da morte
natural (Testamento Vital....) nos querem agora impôr, com o fito inicial e
imutável de gastarem menos e arrecadarem mais, explicando-nos maldosa e atabalhoadamente
que a “BOA MORTE” é em casa junto dos entes queridos. Este: vem, disse a
aranha à mosca...visa preparar o terreno para coagir as famìlias, a aceitar e a
cuidar do seu doente terminal. Mesmo os nazis nos seus campos / matadouros, só
arrancavam os dentes de ouro, depois de terem anestesiado os portadores com Cyclon
B... Esta “gentinha” quer esgaravatar nas entranhas dos vivos, que vão morrer,
que somos todos.
Vão arguir flexuosa e despudoradamente, invocando o superior
e prevalecente interesse do doente, num
arremedo boçal de compaixão pleno de impiedade,
e sugestionados os cidadãos pelo martelar mediático, vão legislar para
estabelecer a obrigação com base no
vínculo parental em sentido lato, arredando como sujectivos e pouco
importantes, os laços de afecto, as condições materiais e logísticas...a vida
real... É claro, que os seres rapaces que
seguram e orientam a mão do legislador, escapam ao âmbito de qualquer lei, mas
mesmo que por milagre esta se lhes aplicasse, fácil lhes seria isolar o seu
doente, num recôndito dos seus palacetes
e só lhe aparecer, quando dispostos, arvorando uma expressão carinhosa, adequada
e proporcional ao seu “interessezinho”,
ou então treslada-lo, sem que isso parecesse mal, para uma dessas instituíções
de cuidados paliativos ou continuados privadas, cujo preço deixa
boquiaberto e calado de espanto qualquer
potencial má-lingua e prova sobejamente quanto o doente lhes
é caro. Excluídos, por se lhes não
aplicar, os do costume, restam como destinatários da lei, os pobres e a classe média depauperada, pelos assaltos
fiscal e semelhantes.
Algures, transcendendo
o egoísmo que forja e subjaz aos afectos
humanos, volita o amor dos pais e o amor dos amantes durante a fase fugaz do
embeiçamento. Exceptuando-os, não há no mundo amor bastante, para que se deseje
partilhar as nossas quase sempre pequenas casas, com um doente terminal de carne e osso que luta e que geme, que
sofre e que o demonstra, que urina e que
defeca e que precisa de auxilio constante
para quase tudo, às vezes até para escarrar a expectoração viscosa que
se lhe gruda aos brônquios e lhos estenosa e entope numa troada dispneica de
roncos e de síbilos, e que lhe cianosa a pele, como livôres cadavéricos
temporões... Esta respiração penosa, este sofrimento visível e indizível, esta
agonia, tornam o ambiente lúgubre e
medonho, e lá no fundo,(porque não admiti-lo?) fazem desejar um desenlace rápido, ao princípio como pensamento
insidioso e malsão repelido com pudor e pressa, mas que depois se instala
e permanece como um desejo sôfrego como os regressados à tona, depois de uma
longa apneia, aspiram pelo ar... e o doente agarrando-se tenazmente à vida que
lhe foge, querendo viver qualquer que seja o seu estado, com os sentidos
aguçados pelo medo e pela angústia desse fim do mundo que é a morte para cada
um, percebe o ar tôrvo dos tratadores, decifra-lhes os pensamentos íntimos, e
ao seu sofrimento aduz-se e acresce-lho, um ressentimento amargo pelos que ainda
há pouco lhe eram queridos, e estes, os tratadores, também eles
padecentes, são invadidos por uma ambivalência em que o rancor carcome e
substitui a piedade, a benquerença e a ternura.
A agonia assistida e mitigada por profissionais, médicos,
enfermeiros, auxilares de acção médica,cujos ofícios incluem a morte, é
diferente e o doente é tratado com
eficácia e sem nojo, e sem sentir que o
estão a empurrar para onde a existência, passa ao domínio do utópico e a ser
regida pela Lei de Lavoisier.
É evidente que não sou contra a morte no seio da família se
houver condições e conjunção de vontades. Acresce referir e reiterar, que nada
nas leis vigentes o impede, pelo que obviamente, o que se pretende, é impô-la.
Há muito que esta gente da governação se vendeu e nos vendeu
aos ricaços, e a democracia de efémera que foi, há muito que se tornou uma
plutocracia onde tudo é manipulado
(talvez até haja mensagens subliminares, impondo-se à vontade) para benefício
dos ”poderosos dos cifrões”.. . Até a carência gritante de cuidados paliativos e continuados públicos, ou a mutilação do SNS, visa
encher-lhes o papo.
Sendo as epiforas um tipo de lágrimas, que não exigem, para que corram abudantes, emoção,
comoção ou suco de cebola, recomendam-se....
João Miguel Nunes “Rocha
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