sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Medo

          E=mc2 talvez não contenha todas as variáveis que mudam o tempo. Talvez outros factores como a angústia, o medo, o relembrar, o querer viver mais, o desejar ardentemente, o aproximar vertiginoso do fim, transmutem as dimensões do tempo e um instante possa intemporal, transcender-se, e coadjuvado, tornar-se incomensurável…
          No rés-do-chão do hospital, há a sala dos cuidados continuados onde os “acabados”, alguns ali há muito tempo, esperam hirtos que a auxiliar que leva os mortos, detenha sobre eles o seu olhar indagador e atento, que os sobressalta e apavora.
          Se pedirmos a cada um dos acabados, ainda capazes, que abram os olhos e nos fitem sentir-nos-emos atingidos por uma tristeza que nos fustiga como uma aragem viscosa e tétrica, que se nos cola e besunta como um gel gelado.
É perturbador, quase insuportável, esse olhar que adensa, soma e retém, a expressão de mil cães espancados e escorraçados pelo dono, sem razão, e assemelha-se em todos os seres humanos informados e convencidos de chofre, do seu fim. Depois da descarga de catecolaminas que nos exalta e sustém, vem o desânimo avassalador, álgido, terrível.
Se corajosos ou sádicos, olharmos com mais demora e atenção esses olhares fitos em nós, veremos que nalguns deles, em muitos deles, há mil lampejos pequeninos luzindo intermitentes, que interpretados, são mil apelos por uma injecção de ânimo e que dissecados em análises profundas e contextualizados, colocam a esperança a par do oxigénio, ambos de importância vital, indispensáveis…
           Quase todos os que ali estão, têm filhos ou famílias que os não querem ou os não podem ter, por centenas de razões plausíveis, explicáveis e explicadas quase sempre, com minúcias, expressões e tons pungentes, entrecortados por suspiros, haustos e ais, e por lágrimas que teimam em não correr, limpas ritmada e tristemente, a lenços enxutos…
Há dias que um rumor insinuando-se sorrateiramente, vindo não se sabe de onde, acrescentou mais uma labareda a este inferno já de si tão triste. Foi a notícia de que fora aprovado no Parlamento uma lei sobre a eutanásia, (não ainda a executada pelo venenozito ou pela injecção letal, mas outra ainda mais pavorosa, levada a cabo pela suspensão da terapêutica e dos meios de suporte vital) que liberalizando-a, a tornava aplicável, não só a pedido do doente mas também a pedido da sua família mais chegada. Os acabados que até aí olhavam para os filhos e para os netos, com a ternura amorosa de quem contempla o único elo material da sua eternidade, olham-nos agora de soslaio, sub-repticiamente, como quem avalia à socapa a pujança de um inimigo impiedoso e temido; as visitas, antes encaradas como um bálsamo terno, são agora esperadas com medo que a breve trecho degenera num rancor ácido, de pH suficientemente baixo, para num ápice, corroer e extinguir todos os afectos, pois não podem existir ou persistir amor ou sentimentos de benquerença, por quem nos quer, não só fora do seu caminho, o que até se aceita e se perdoa, mas fora do mundo, o que é totalmente inaceitável e imperdoável, seja por que motivo for, que no nosso interesse, não o é…
Há entre os “acabados” muitos infelizes, que afásicos e privados da eloquência do gesto, se vêm limitados a esgares ininteligíveis onde se não vislumbra nada que ateste o seu entendimento e ultrapassem a nossa competência de decifração…Sabe-se lá o que lhes vai na alma e se esta barreira que os separa das pessoas não é unidireccional, e se aterrados, percebem tudo…e se há alguma coisa mais medonha do que qualquer vida, é a morte…até os mais crentes, da gente simples aos mais altos clérigos, mesmo não o admitindo, provam-no, agarrando-se ao “aquém” até que lhes decepem os dedos…
No tempo em que as leis eram para aplicação “universal” e o legislador era sério, tinha brio e se esmerava por prever todas as hipóteses, eram excluídos da herança o médico e o padre que tivessem assistido o moribundo na sua fase final, dado o poder que tinham de sugestionar o infeliz, um prometendo-lhe a cura e o outro prometendo-lhe a vida eterna. Incluíam-se os familiares, como herdeiros legítimos, mas presume-se que a estes o doente conhecia sobejamente, para se deixar iludir… É por isso que outorgar-se à família, o poder de representar o incapaz, interpretando-lhe a vontade, me parece extremamente inadequado. Sem obviamente pôr em dúvida que a maior parte das famílias querem o melhor”para o seu doente”, desde tempos imemoriais que se sabe que o interesse prevalece em geral sobre os afectos…e a censura dos mortos, só exequível  por “vidências mediúnicas,” ou pelo remorso, que pressupõe consciência, é peso de pouca monta para os vivos e de nenhuma serventia para os mortos…
Se as galinhas não forem os animais estúpidos, que nós seres supremos, presumimos que são, será horrorosa e escusadamente cruel, a alameda do aviário onde de ovos passam a pintos, de pintos a frangos e de frangos a frangos degolados. São galinhas videntes, mais competentes do que o professor Karamba ou do que a astróloga Magda; do seu princípio adivinham o seu fim. Bastava bifurcar a recta, ocultando ao todo o destino de uma parte, para criar a esperança e acalentar em cada frango o desejo e o sonho utópicos, de escaparem à decapitação. Façamo-lo aos nossos velhos, aos nossos doentes crónicos, aos nossos inválidos…
Até os Nazis, no seu apogeu de extermínio, o fizeram. Nos grandes matadouros/crematórios de Dachau, Treblinka, Auschwits, Sobibor,Maidanek,Chelmo, Belzev, etc,etc, etc …(não só de judeus mas de todos os que divergissem da linhagem ideal dos arianos de “raça pura”, como os PIGS) os recém chegados a eliminar, eram sob o pretexto  de uma desinfestação (pediculose) e de um banho,  levados a um recinto, onde lhes pediam que se despissem e que  nus,  passassem a um simulacro de balneário, onde encerrados, eram pulverizados com o insecticida Ciclon B. Os nazis não lhes tinham mentido. Morriam sem piolhos…Façamo-lo aos nossos infelizes”acabados” por que informar seja quem for, do momento em que o vamos abater, mesmo que com o seu “acordo”, é de uma maldade excessiva…
  O que os “acabados”não sabem, porque sabendo-o sentir-se-iam apaziguados com a morte próxima, é que no mundo a que não tornarão, tudo é agora triste, sombrio e desolador e as pessoas atordoadas se movem em círculos entre escombros, cinzas e pó …do que foram sonhos, projectos, vidas…
           E todos os dias vêm acusá-los de uma dívida, mesmo aos que nada tiveram nunca, fazendo-as sentirem-se culpadas como nos pecados mortais da infância, em que se acreditava sem contudo se perceber.
  Os que se atrevem a olhar para o recôndito onde as verdades se despem, há muito que perceberam, sem margem para ilusões, que:
            A exorbitância dos juros da “dívida” exclui por si só, qualquer propósito de ajuda.
            A relutância obstinada em renegociar os “juros” alegando honra e credibilidade quem não teve pejo, de enganar os cidadãos que o elegeram, e de descer à vileza maldita, de amargurar os últimos dias dos velhos, não é crível.
            A pressa frenética que demonstram em privatizar tudo, por “quanto menos melhor”, mostra claramente ao que vieram…
             A própria maneira exagerada como representam o seu, já de si, odioso papel, acrescentando-lhe incerteza, “suspense” e uma desalmada canalhice, é excessiva, pelo que obviamente faz parte do plano, porque não se pode ser tão estúpido e ter-se aprendido o abecedário.
              A história sem fim, do cidadão que viveu acima das suas posses, o suposto pedido depois de uma reunião de todos os banqueiros, prova, na minha opinião que estamos a viver um enorme”conto do vigário”. Até Sua Reverência o Senhor Cardeal nos veio advertir da inutilidade das contestações…
              Depois de um empréstimo sabiamente calculado para extrair o máximo ao pedinte, este esvaído, deixa também o penhor. É assim que há milénios os agiotas enchem as suas arcas de ouro, e é por isso que nem os que lhes deveram, lhes ficaram gratos.
              Findo o seu desempenho de “mandarete de rapina”, o eleito vai desarvorar deixando um país devastado, cruzado por abundância de auto-estradas onde se paga por não passar, conduzindo a desertos desabitados e a frondosos eucaliptais, pronto à invasão do “capital” , sobretudo dos que muito levam, pouco trazem e nada dão…
              Os nossos grandes empresários quase todos estabelecidos no ramo da mercearia, explorarão também a saúde no cargo tríplice da engorda, do tratamento e da matança…
              Quem podia fazer alguma coisa age prudentemente, que cautela não é medo, não vá o poder cair-lhe precocemente no colo, derreando-o…
              Raio de mundo:
              Esbulham-se os velhos, os doentes, os cidadãos contribuintes, impede-se-lhes o acesso aos medicamentos, às terapêuticas, aos cuidados paliativos, criam-se situações de medo e de motivo para o ter, e abre-se-lhes a porta à morte garantida pelo Testamento Vital, cuja coexistência com uma medicina idónea, bem praticada e de acesso garantido seria de interesse residual, mas que num futuro próximo em que a saúde seja o “Grande Negócio”, fará todo o sentido.
 Os doentes pobres vão morrer mal esgotem o pecúlio ou o crédito e os doentes ricos (desde que saibam precaver-se dos herdeiros) vão aproveitar-se de todas as evoluções, e de terapêutica em terapêutica, de transplante em transplante, viver até de que deles próprios só sobrem, meia dúzia de neurónios entre ateromas e glia, mantendo vagas reminiscências do que foram num passado distante, sem contemporâneos sobrevivos…
 Estão a comer-nos as papas na cabeça. Tudo é preferível a este buraco negro onde  o medo e o desespero abundam e alastram e de onde a esperança se esvai…
                                              
João Miguel Nunes “Rocha”
(artigo publicado na revista de JAN/FEV 2013)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

As fomes

Era meio-dia. O sol inclemente incidia verticalmente na savana sugando a humidade, crestando os verdes, gretando a terra, tisnando os incautos e os sem abrigo.

 No horizonte, o céu levantava-se da planura numa campânula azul-cobalto, iridescente que atabafava tudo. Predominavam os matizes ocres ferruginosos, amarelos fortes, e se se percorresse a paisagem com o olhar rente ao chão de vez em quando levava-se com uma chispa reflectida maldosamente pelos cristais de mica e quartzo dos calhaus magmáticos. O feldspato parecia impregnado de unto seboso, e não cegava. O bando de crianças acachapava-se de pé contra o tronco imenso do embondeiro, parecendo enormes sardaniscas contra a prumada de um muro. Fugiam à torreira, mas a essa hora, a árvore só dava uma sombra escassa e quente. Via-se que a tribo a que pertenciam já fora educada pelos brancos, provavelmente missionários e cantineiros, profissionais que penetraram em todos os recantos de África, uns vendendo a fé, os outros vendendo as capulanas, o álcool, as missangas e as quinquilharias, embelezando os felizardos por dentro e por fora, no corpo e na alma. Isso era evidente, porque apesar dos seus sete, oito anos, impúberes e sem malícia, todos traziam um pano de capulana de cores e padrões surpreendentemente bonitos, que seguros das saliências agudas das cristas ilíacas ântero-superiores, lhes desciam pelo abdómen tapando-lhes pudibundicamente as impudicícias, também essas feitas por Deus, por esse Deus, que elevava aos Céus ou condenava a um Inferno inexorável e infinito, no tempo e no sofrimento. Produtos últimos de uma selecção implacável, apesar de magros, todos tinham corpos belos com a musculatura bem definida como no Rouviére, e as meninas, só se distinguiam dos garotos, pela maior delicadeza das feições, e, pelo “adoçado” do olhar, trazendo à mente dos velhos cépticos como eu, a visão da flor que inebria e fascina, entontece e atrai o insecto, que acaba digerido na sua corola que se fecha. O Deus omnisciente que fez o céu e a terra, semeou o universo de armadilhas, talvez por na sua imensa sabedoria antever, que a aventura só o é, com a baforada adrenérgica do perigo, que o amor só floresce completamente com uma pitada de ciúme e que o êxito que se não alicerça em trabalho e esforço, acaba por ser decepcionante, até para quem o alcança. Mesmo nos períodos de menor abundância, como este, a vida é bela. Se no rio continuassem a existir poças de água a vida continuaria, uns dias mais, outros dias menos mas o bastante para se ser feliz, porque a felicidade, a alegria de viver, não dependem apenas do que possuímos de palpável, mas dependem também e sobretudo, da nossa confiança em nós e nos outros, e da nossa capacidade de sonhar. Os Porches, os Ferraris, não são componentes importantes da felicidade, são meros elementos de afirmação com que nos pavoneamos, uma carícia ao nosso ego, mas perfeitamente substituíveis por um outro “ter”, num mundo de valores relativos, de comparações…a vida é uma dádiva, constituída por um somatório de instantes, que se não podem adiar, e não gozados, passam na mesma inexoravelmente, e, para sempre se perdem na voragem do tempo. Por muito que a nossa megalomania nos erga e o negue, não passamos de cintilações no rolar dos milénios, de grãos ínfimos de poeira num universo de desertos, haja ou não haja Deus… Na desolação da savana no tempo quente, o grande perigo era a desnutrição proteica inerente à seca extrema. Havendo poças de água havia batráquios, insectos, larvas e tudo lhes servia como fonte de aminoácidos. Há dois anos a seca fora grande e a irmãzita do Bonáfu morrera…ao mesmo tempo que emagrecia o abdómen foi-lhe crescendo, crescendo, transformando-a num esqueletozinho barrigudo e disforme. Os lábios foram-se retraindo, retraindo, arrepanharam-se-lhes e o esmalte branco dos dentes alvejava constantemente, esboçando um sorriso de tristeza infinita, comovente. Ainda assim sorria quando a enterraram. Uma réstia de moedas de um dos muitos milhares de porta esmolas do Vaticano, um extra de um Ferrari de um VIP, uma raspa de ouro de um ricaço e milhares de crianças como a irmãzita do Bonáfu sobreviveriam à infância, cresceriam. Mas o Vaticano arrecada para Deus, que por força da sua omnipotência o não precisa, e os ricos são-no porque amealham, não por dar e a globalização é uma “grandessíssima” p… com as intimidades candidamente escondidas por rendinhas bordadas a “Lobbis e Cartéis” porque o nudismo é para os naturistas e outros que tais, e, os conhecimentos ancestrais e milenares ensinaram às damas “sábias e sabidas”, que esconder dando lugar a imaginação atiça o desejo, que exacerbado pelo manejo hábil de olhares lânguidos e lascivos e por vislumbres subliminares da “carninha pecadora” transformam o avaro num mãos largas, num perdulário, e, despertam o próprio velho, adormecido como a bela, ajudado à sua letargia pela próstata, pelas hormonas, pelo pudor…e claro, por enormes períodos refractários absolutos e relativos, que estes não são exclusivos do coração, aguilhoando-o com a ferroada da nostalgia de uma juventude que para sempre se foi, e, que nenhum Deus, que nenhum Céu, que nenhuma crença, nem sequer uma carrada de “Viagra” lhe devolverão jamais… A Juventude do macho não se consubstancia e reduz a um símbolo fálico, é muito mais, e, talvez a decadência que nos acompanha e progride na velhice seja um bem, uma forma de “delapidar o apreço” pela vida e de nos apaziguar com a morte, que nunca conseguiremos iludir, seja qual for a terapêutica rejuvenescedora que façamos, e de resulta quase sempre, uma triste réplica de nós próprios…é no número de mitoses das nossas células, no cúmulo de detritos intra e extra celulares inamovíveis e no jogo aleatório do acaso, que Ela se baseia, para marcar a nossa “hora”….

  Os negrinhos citados na sua ignorância inocente e juvenil não o sabiam, mas há muito que a globalização penetrou em África, minando-lhes o modo de vida, e o seu mundo, já tão parco e tão precário, talvez em breve se transforme numa lixeira radioactiva, onde imperarão a morte impútrida e a esterilidade de um planeta sem vida, desolador e medonho.

   Á mesma hora, nas grandes latitudes do norte, onde o gelo é eterno e a noite imensa, o casal de velhos saiu cabisbaixo do abrigo da família para a penumbra uivante, agreste e terrível.

   Andaram alguns passos sobre o gelo e quedaram-se desolados e abraçados. As lágrimas congelavam-se-lhes sobre as faces vitrificando-lhes as feições e nos trinta graus negativos da noite sem fim, em breve morreriam; mas tinha de ser, a comida escasseava, o socorro tardava e havia que tapar bocas e foram eles, os mais velhos, os escolhidos. Nada havia de maldade nesta sentença de morte ditada pelas circunstancias do clima impiedoso…a vida é um palito tirado à sorte, e eles tinham o maior, tinham de morrer, mas nunca mais ver este mundo gélido mas belo, cruel mas também terno, custava, custava muito; por isso choravam, o seu desespero e a sua angústia… que nem a certeza da morte rápida, conseguia atenuar…

    O seu mundo já fora afectado pela besta global, dissipando-lhes os recursos com pescas e caças que tudo dizimavam, com o aquecimento do efeito estufa…o ser humano é o grande predador de si mesmo…

     Na Europa civilizada de clima ameno, onde os maneirismos e os tiquezinhos, laboriosamente aprendidos, simulam a boa educação e dissimulam a nossa natureza impiedosa, boçal e brutal, a mulher jovem e linda, sonhava de olhos abertos com o Audi; de vez em quando o seu olhar perdia o “absorto onírico” e poisava langue, suave, aveludado e belo, num dos basbaques sentados na esplanada e se houvesse a conjunção de factos, de ter poisado num homem e deste ser heterossexual, logo ele entrava em transe hipnótico, ficando pasmado, de boca aberta, a olhar para a jovem embevecido, a babar-se cuspos espessos, o que prova conjuntamente, que Pavlov tinha razão e quão bonita era a nossa jovem , filha única de pequenos proprietários que viviam do amanho da terra  e que tiveram de fazer inúmeros  sacrifícios, para que ela pudesse estudar longe da terra onde nada havia .Estudara afincadamente fugindo da miséria, lidara com pessoas de outras ascendências sociais, invadira-a a ambição que transmuta a vida e atinge os sonhos.

   Quando saíra para o liceu e depois para a universidade, as idas a casa começaram a espaçar-se e a tornar-se mais breves e tinha de fazer um esforço para conter-se, para não mostrar aspereza, irritação, perante as perguntas insistentes dos pais tão cheias de interesse por ela, mas tão ingénuas e maçadoras, das suas carícias tão cheias de ternura, mas tão rudes, e que feitas por mãos, a que o trabalho conferira a textura de cavacos, tão ásperas, tão toscas, tão desagradáveis …

    O afastamento no espaço, no meio social e nas pretensões, foram carcomendo os sentimentos de ternura dela pelos pais, e, substituídos por uma frieza crescente, por uma noção de dever irritada e finalmente pela indiferença que atesta a extinção dos afectos. O ódio e o amor podem transmutar-se, mas a indiferença é um prenúncio do fim  irrevogável, definitivo…

   O Natal, esse período fingido, ataviado de logros e de rituais em que se imita a bondade, em arremedos que quase sempre descambam em piedadezinhas ostensivas, que vertem humilhações sobre os desvalidos e trazem o seu lucrozinho, aproximava-se e como sempre ía passa-lo com a família, a casa , que nessa altura se enchia de comidas de sabores  primitivos, pré-históricos, a que contudo não conseguia resistir; imaginou uma preparação histológica do seu próprio tecido adiposo, numa lamela observada ao microscópio depois do natal, com os lipócitos com as suas membranas lipo-proteicas estiraçadas pela abundância de untos intracelulares e estremeceu; ía engordar cem quilos…que gaita’…Recomeçou a pensar no Audi e na sua impossibilidade de o comprar. Quando os pais, já velhos, morressem, venderia a quinta….levantou-se num repelão assustada e assustando os sonhadores, arrancados em sobressalto, aos seus delírios insusceptíveis de aprovação Papal, e, surpreendendo os outros circunstantes.
   Chegou a casa ainda espavorida pela associação de ideias e foi telefonar aos pais, e, como quem se penitencia ou tenta apaziguar o destino, falou-lhes longamente, ameigando a voz, atemorizando-os duplamente, pelo tom meloso e pelo telefonema sem motivo, sem nenhum  pedidozinho. Estaria  doente...a sua filhinha?

  Era inteligente, trabalhadora, capaz , mas um certo rei  cujo reinado remontava à sua infância, perante o dinheiro a rôdos de Bruxelas investira em auto-estradas concessionadas eternamente a privados, em negociatas mais rentáveis que mil milhões de sortes  grandes,  e também tão afeiçoado à cultura, que no próprio dia da morte de Saramago anunciara mediática e lamentavelmente, que o escritor nunca lhe fora apresentado, num tom de desdém alindado de soberba, que só podem ser dignos de dó… Na minha opinião , tanta falta de vista transcende os órgãos da visão e subjaz nos latifúndios retroorbitários .

  Fazendo jus á memoria de alguns dos nossos melhores reis interessou-se pela agricultura e pelas pescas, que destruiu, fomentou a eucaliptização do país e abriu muitas, muitas universidades e para que não faltassem nem alunos nem doutores deixou que se estatuíssem limiares de dificuldade, díspares e disparatados, formando-se a eito pessoas de grande capacidade e outros que lêem, soletrando, como quem decifra enigmas de grande complexidade…Cortou-se assim cerce a única possibilidade, que os berço humilde, tinham de ascender por capacidade, porque desta fornada de licenciados e de mestres, é a piramidezinha, usada desde o nosso passado cavernoso , que determinará os eleitos.

   Assim a nossa jovem era inteligente e capaz, e ter tirado o curso de medicina com notas altíssimas provava-o, mas dizer que era boa, é outra conversa…Mesmo o ser humano mais bem formado tem de dissimular, de esconder cuidadosamente o que lhe vai na alma, porque esta é complexa, ancestral, e exposta á luz nua e crua, horrorizaria o próprio Satanás, que como é do conhecimento de todos, é um ser de coração duro, empedernido, difícil de chocar.

   Tudo em nós, seres humanos, todos os nossos anseios, se centram e concentram em nós próprios e todos os nossos movimentos se executam por força do nosso desejo de sobrevivência, do nosso egoísmo e do nosso desejo de sermos importantes, ou pelo menos de o sermos, a nível do nosso circulo de relações…Por isso mesmo, se a sorte grande tem de sair, que saia a um desconhecido e não a um amigo nosso, se alguém tem de ter grandes êxitos enquanto nós não passamos da cepa-torta, que não seja o nosso irmão.

    Se angustiados, sentimos a pulsão ansiosa de partilhar a nossa angústia, façamos como o barbeiro, que foi para o canavial gritar o seu enorme pasmo, por ter visto que o príncipe tinha orelhas de burro…

  Há quem procure nos padres, nos médicos, nos psicólogos e noutros profissionais ( bruxas ,videntes ,astrólogos, quiromantes) a ilusão de que alguém foi profundamente tocado pelo nosso caso, mas os profissionais calejados são os menos propensos aos  abalos da piedade: o médico conforta maquinalmente quando informa da doença, a extrema- unção e a missa de corpo presente, endureceram o padre, e a sua ladainha, as suas palavras de conforto nada significam para ele, são meros reflexos condicionados.

   A nossa jovem não sabia tudo isto, porque estas coisas só penetram na carapaça dos saberes, depois de termos vivido muito, talvez num breve “ocaso”, em que haja uma conjunção de sabedoria empírica com uma rarefacção neuronal, e os pensamentos, fluindo por circuitos menos labirínticos e complexos, conduzam a recônditos de luz….ou talvez seja apenas, ser-se velho e taralhouco. Foi por isso, que associar a morte dos pais á sua satisfação, a chocara tanto…

   Futuramente, se vivesse, aprenderia que o ser humano se adapta a todos os horrores e somos mais afligidos pela descrição brutal dos factos, do que por estes em si. A mulher que se dirige ao médico pela terceira vez do mesmo ano, da mesma vida, para ser submetida á interrupção voluntária da gravidez, ficaria estarrecida se lhe dissessem: hoje não podemos eliminar o seu filho por métodos farmacológicos; só se quiser submeter-se ao aborto mecânico, por raspagem e por sucção, o que significa esquartejar o seu bebé que já tem sistema nervoso central e periférico, e que até já chucha no dedinho, e claro, já sente dor, e, provavelmente medo…Estas palavras assim ditas, sem pinga de censura, suavizando-se até a voz, num tom pio e benevolente de seminarista, enchê-la-iam de raiva contra o médico, mas provavelmente não a demoveriam da sua resolução.

   O mesmo se passará em breve com os familiares que forem requerer a “interrupção da vida” do seu pai, do seu doente, do seu avozinho…fá-lo-ão sempre e só, no interesse do outro, não no deles, e, o mais espantoso, é que este esbater e adornar  da verdade com  “laivos de verbe,” funciona tão bem que a própria pessoa acredita no que diz , é sincera ao faze-lo.

   A nossa jovem não era rica nem sequer remediada, mas mesmo assim, tinha bem mais, do que a maior parte dos seres humanos e se passava fome fazia-o voluntariamente. Dantes a magreza extrema associava-se à fome negra dos pobres, à tísica, à caquexia terminal das neoplasias. Depois começou a associar-se o ideal de beleza a um esqueleto com mamas, ou a um jovem com as miudezas realçadas pela roupa e pela natureza ou pela roupa e pela estratégia….Foi o começo, da tão conhecida “anorexia nervosa “em cujo pico, o doente se deixa morrer de fome, num mundo de abundância cheio de untos, de presuntos e de guloseimas.

   Por trás da vidraça o velho professor espiava de um canto da janela a noite morna. As pupilas em midríase luziam com os raios incidentes reflectidos pelas retinas, acendendo-lhe os olhos como aos lobos. As luzes do bairro iam-se apagando com uma lentidão “lesmática” que aumentava o tempo; o velho tinha fome mas preferia morrer dela, a ser visto a vasculhar o lixo. A pensão de reforma há muito que acabara, comida a meio do mês, como acontecia sempre, apesar de ter abdicado da televisão, da medicação e de todos os gastos supérfluos. No estômago vazio a secreção cefálica de HCL, estimulada pelo “imaginar petiscos”, materializava-se numa moínha ardente entre o umbigo e o apêndice xifóide, exasperando-o…

   A última vez que esgaravatara o lixo, tivera imensa sorte: encontrara sete papossecos córneos mas sem bolor e conservando ainda o sabor bom a pão, uma dúzia de “jaquinzinhos” ressumando bom azeite, que algum penitente deitara fora, e para coroar toda esta fartura seis pastéis de nata ainda embalados, a que o azedo do leite, em vez de estragar, conferira, um delicioso sabor a queijadas…

    Já vivera bem e por sorte a casa que habitava era sua, sem o que teria de calcorrear as ruas. A mulher morrera-lhe há quatro anos, e o próprio “papa defuntos” da funerária, junto com “os meus sentidos pêsames” lhe entregara um impressozinho, com as obrigações pós fúnebres…Enfim as finanças caíram-lhe em cima e explicando-lhe que por ter mudado o sujeito passivo, a sua casa fora reavaliada pelas regras do C.I.M.I,(D.L 187-03) de que resultara um aumento de mil quinhentos e oitenta por cento, do I.M.I.; ainda tentou beneficiar da isenção temporária, alegando precisamente, que mudara o sujeito passivo, mas explicaram-lhe que para a isenção não…

    Ficara sem remédio a pagar de Imposto municipal sobre imóveis, da casa que habitava e era sua, imensamente mais do que auferia de quatro prédios de três andares de dois fogos, que possuía, de rendas congeladas desde os tempos escuros, apesar dos muitos galopes da inflação, tornando-as obsoletas, iníquas…

   Ei-lo, professor de liceu reformado no topo da carreira, auferindo a reforma acrescida da renda de quatro prédios de habitação, passando fome de rato, em tempo de vacas magras, famélicas…
Todos os meses, recebia uma intimação, para fazer obras num ou noutro dos seus apartamentos. Que se desmoronassem com os moradores dentro; obras, com que dinheiro? Mesmo que tivesse dinheiro, com as rendas que recebia, demoraria entre dezoito a vinte e seis séculos, a ressarcir-se do gasto…Nem mesmo a igreja podia pedir-lhe, que abdicasse de tanto do seu tempo a trabalhar para os inquilinos…O seu grande medo era que lhe penhorassem a reforma. A primeira vez que tal receio o acometera planeara agredir a autoridade que o viesse informar; munira-se até de um arrocho para o efeito. Seria preso, e na pior das hipóteses teria cama, televisão e três refeições por dia, coisas que agora não tinha, mas desde que ouvira falar de prisões domiciliarias, tinha verdadeiro terror de que o confinassem a casa e morresse, de tanta fome como se padecesse de anorexia, o que era completamente falso, porque em toda a sua vida não tivera um só dia de fastio, de fome sim, de falta de apetite, não.

        Os tempos de ditadura foram tempos de muitas arbitrariedades, de muita miséria, e de um fosso imenso entre os pobres e os ricos. Havia favorecidos, que os haverá sempre, mas o cancro da corrupção não se disseminara ainda em metástases, corroendo tudo. Cada um, era em grande parte condicionado pelo nascimento mas apesar de tudo, na opinião dele, nesse mundo, onde sem dúvida imperava mais a pobreza dos pés descalços e a fome que faz doer, havia na constância das leis, na honestidade das instituições, na permanência das regras quando chega a hora de pagar… e havia grande probabilidade de se morrer de morte natural, coisa que se lhe afigurava cada vez menos provável, no futuro.

   De manhã, deambulando pelas ruas, encontrara um velho companheiro do liceu que exercia medicina num hospital EPE. Ficara a saber que havia doentes de primeira e de segunda vezes, pagos pelo erário público a125 e a30 euros respectivamente. Como os doentes readquiriam a “virgindade assistencial” após um ano sem consultas no hospital, a “plastia do hímen,” era acarinhada pelos gestores, obviamente. Depois de se despedir, coisa curiosa, sentia evolar-se de si próprio um fedor rançoso…seria porque o amigo lhe dissera? Tu e eu, apesar da nossa magreza, não passamos de grandes lipócitos. Eu, cada vez que pratico um acto médico, quer o doente morra quer se salve, e mais ainda se o curar, estou a esbanjar bens públicos.

  Tu, que nada produzes e persistes em viver frustrando expectativas, és mesmo assim um “ónus adiposo”, menor do que eu, porque só oneras pelo que te “quiserem” dar, enquanto nós, funcionários públicos no activo, sobretudo os que produzindo, geramos mais despeza, somos o panículo adiposo que sobrecarrega o estado e impede o país de progredir.

  Os Institutos, as Fundações, os Grandes Empresários grudados ao Estado como carraças, mas alegando, sem corar, funções simbióticas, certos políticos reformados na  juventude ,etc,etc, são tudo músculos de boa fêvera, sem resquícios de lipum ,e, as parcerias público-privadas são diafragmas, que não só puxam e empurram, mas que nos fazem respirar. Enquanto aguardara a noite estivera a folhear um álbum de recortes de jornal que a sua falecida guardara; num deles, numa pose pomposa, inchados como a rã que queria ser boi, quatro homenzinhos sorriam para a posteridade que se a tiverem, só na galeria das aberrações…

      No largo imenso, os jovens e os velhos, as mulheres e as crianças amontoavam-se num enorme ajuntamento. Por trás das gentes a Morte surdira subtil, suave e sorrateira e esboçava um sorriso de ironia gélida. Os jovens olhando em frente para um futuro que lhes parecia imensurável, desafiavam todos os poderes do universo e diziam-se feitos á semelhança de um deus eterno…E a Morte, sorria impiedosa e gelada e desembainhava, empunhava e erguia a foice, com que degolava a alma dos homens, apagando-lhes todas as percepções passadas, presentes e futuras e mergulhando-os num “não ser”, negro, opaco, silencioso e vazio em que se decompunham e transmutavam, em biliões e biliões de átomos, que se juntavam aos outros átomos do universo, cada um com o seu núcleo e a sua girândola de electrões, como sistemas solares em miniatura…

 E, as torres gémeas desabaram. E, o polido Ocidente massacrou os povos, para os libertar dos ditadores. E,  Bin Laden foi morto, sem se calhar, ter vivido…

 E, as histórias que nos contavam na infância, eram fantásticas mas graciosas e todas terminavam com o utópico mas lindo: e foram felizes para sempre…E, as histórias que nos contam agora em sessões contínuas fastidiosas, são igualmente fantásticas, mas sem graça e terminam todas, com a ameaça da bancarrota, (que já aconteceu), visando criar um clima de terror propício, a que nos tirem o resto, sem contestações. O património estratégico de valor imenso, será cedido aos mandantes, por uma fracção irrisória do seu justo preço, e o S.N.S. será uma “parceria,” não vá o diabo tecê-las, e haver umas continhas a pagar.

  E, vou segredar às minhas filhas, que se quiserem enriquecer súbita e fulgurantemente, como muita gente de bem, explorem os cumes da atmosfera, lá, onde a gravidade hesita e deixa de puxar, porque obviamente, foi para lá que foram, os triliões dos pobres, esbulhados, e o dos ricos, que dizem, não os ter…

  E, os sábios que vão substituir os “transportes públicos” pelo TGV, que nos façam um ramal para Niendertal. É lá, que o futuro fará o seu festim canibalesco, farto em boa proteína, bem cada vez mais e escasso e caro, no nosso tão civilizado mundo ocidental…

                                                          
João Miguel Nunes Rocha
(artigo enviado para publicação em Agosto de 2012)

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Os génios do ambíguo

Eram quatro e tal da madrugada, hora em que os poderes malignos que nos espreitam da penumbra se tornam quase reais, hora em que nos hospitais e nos lares os moribundos capitulam e se deixam levar pela morte, hora enfim a que detesto acordar, porque a essa hora, o labor físico-químico do cérebro só gera pensamentos melancólicos, e, em que a própria alegria, se presente, parece dúbia e densa, como se acarretasse presságios de desgraça.

Sabendo por experiência própria que a essa hora, é preciso um rebanho infindo de carneiros para afugentar a espertina, comecei como quem os conta, a remoer o que sonhara.
Fora com uma parábola de Jesus Cristo em que ele diz: - Em verdade, em verdade vos digo, que é mais fácil a um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a um rico entrar no reino dos Céus. - Por capricho do fluxo sinuoso do pensamento onírico, associei (embora não haja nenhuma relação) política com riqueza, e de repente percebi, que na outra vida em que irei para o Céu quando sonho, porque quando acordado sou ateu, não iria encontrar políticos ou só políticos pobres e farroupilhas... Pensando que iria detestar esse Céu carente da eloquência dos nossos tribunos, presidentes de câmara e ministros... cheio de maltrapilhos e pés descalços, acordei banhado no suor gelado dos pesadelos piores, às quatro e tal da madrugada, hora em que os defuntos nos vêm assombrar e pé, ante pé, produzem crepitações e estalidos no madeirame do sobrados antigos como em criança acreditava e agora gostava de acreditar porque o pior de tudo, é o fim absoluto, o nunca mais ser, dos que não crêem...
Na minha recapitulação e interpretação do sonho, recordei a catequese que frequentara em garoto e nos evangelhos que mais tarde lera, e fiquei com quase a certeza que o espírito divino que inspirara os quatro evangelistas nas suas versões, não inspirara à menção do tamanho da agulha e do respectivo buraco, nem a uma especificação concreta e mensurável da riqueza no tempo e no espaço e que havia no omisso, um toque de génio, que criando uma ambiguidade permitia múltiplas arguições, inclusive o escancarar das portas do Céu aos mais ricos e opulentos, mesmo aos que adquiriram a riqueza (haverá muitos outros modos?) de forma facínora e rapace. Sem raciocínios profundos basta atermo-nos às regras da tabuada e ao conceito de saldo médio, para ver que todos chegamos ao limiar do além pobres como job ...ou mais ainda...
 Voltando e limitando-me às coisas terrenas há também por cá, um génio do ambíguo que é contratado pelas seguradoras na sua redacção das apólices, fazendo os segurados crer que andam a pagar a sua saúde, até perceberem que de facto andaram, no dia em que adoecerem; ou segurar a casa contra a gatunagem ou o fogo posto... Eu próprio já fui vítima dele; tem olhos de lupa na cara de Satanás onde assoma um resquício de malícia. Impingiu-me um seguro para navegação no veleiro com cláusulas múltiplas contra piratas, sendo-me posteriormente explicado pela seguradora num litígio, que
no conceito deles, o último pirata fora um inglês enforcado há cerca de dois séculos.
Nos tempos tenebrosos de escuridão não democrática os decretos-lei só regulavam para o futuro. Era o tempo dos governantes sovinas com as botas e com o erário público, que não recorriam aos génios que são ‹‹carotes››. É por isso que as alterações que andam a fazer às nossas reformas tresandam a marosca  porque o decreto-lei 498 de 72, que as estabelece e regula, não é de forma alguma ambíguo...
Penso que a contratação de génios do ambíguo para interpretar ou redigir decretos começou no princípio da última década do século passado.
Eram tempos de abundância. Formara-se um rio de dinheiro em Bruxelas que desaguava directamente cá, numa foz de mil braços e quinhentos deltas.
Todos os ‹‹iniciados››, que tinham conhecimentos ou contrataram um génio, tiveram a sua oportunidade de encher os cofres e reforçar a continha na Suíça...
Fizeram-se obras de muita monta e pouca serventia. Impermeabilizou-se o litoral do país, agredindo-se a natureza e mudando-se o clima. Criaram-se licenciaturas em áreas tão extraordinárias que se um dia tiverem aplicação, já o licenciado, há muito se finou...
Houve quem se deitasse pobre e acordasse mais rico que o rei Salomão, e, as respostas atabalhoadas e tartamudeantes que alguns deram geraram desconfianças mesquinhas... Mas eu que estudei lógica na filosofia do 3°ciclo do liceu sei a resposta: -Todos eles têm amigos, logo ali, fora do sistema solar, mas dentro da Via Láctea...
Trouxeram-lhes a fortuna em naves espaciais, o que explica a frequência dos OVNI; Mas os extraterrestres pediram-lhes segredo; São os melhores de entre nós, porque as suas respostas balbuciantes e ambíguas se devem afinal à sua nobreza de carácter, ao respeito pelo segredo a que sob palavra de honra se vincularam... É lamentável o modo como se podem deturpar as coisas animados pela inveja que entre nós campeia!
Nesse tempo de vacas com obesidade mórbida, com úberes das tetas a roçarem os calhaus dos pastos planos, não havia necessidade, pelo que é duplamente miserável, uma autêntica vilania, o que então fizeram aos ex-combatentes milicianos da guerra do Ultramar, que foram esbulhados da contagem do tempo (dada pelo ditador) em que arrancados à sua vida civil foram usados, como alvo e detonadores de minas na guerra... Foram-no pela Lei 30-C...De toda a nossa classe política apenas uma voz protestou contra esta extorsão e injustiça...Terá sempre a minha gratidão e o meu apreço apesar das várias recomendações que fez aos governantes, não terem sido acatadas.
Fizeram-se também umas alteraçõezinhas nas interpretações das carreiras médicas privando-se os colegas do acréscimo de contagem de tempo para efeitos de aposentação inerente ao regime de trabalho de 45 horas semanais, nos internatos geral e complementar.
Nasceu-me então o interesse pelas coisas políticas, que ultimamente se tornou uma paixão exaltada, muito imprópria da minha dignidade e vetustez. Sinto a «máxima» subir e dilatar-se, abalroando-me o endotélio das artérias, que sopram e latejam em protesto. Qualquer dia se insisto nesta minha mania de assistir à eloquência dos debates políticos do telejornal, rebenta-me alguma das intra-cranianas esguichando hemorragias, semeando-me o córtex de ilhas de estupidez entre os neurónios pensantes, já de si escassos e com uns danozitos isquémicos...
O sorriso ambíguo que uma mulher bem educada, pelo génio delas, sabe fazer quando o amado, com expressão basbaque, lhe exibe os redos abdominais, os psoas ilíacos e outras circunvizinhanças, merecia por si só, uma sub-especialidade de psiquiatria... É tão ambíguo, tão ambíguo, que pode ter o efeito devastador de uma arrochada fronto-temporal, ou paradoxalmente, prender mais do que um nó direito ou um lais de guia.
Muitos venderíamos a alma ao diabo (se o houvesse) para voltar atrás... mas a vida é efémera e o tempo só passa uma vez, numa voragem avassaladora que se perde na imensidão do espaço, lá longe, a milhões de anos-luz, numa explosão sublime e incomensurável de energia e luz.
É triste admitir a queda do nosso ídolo científico, pela inexorável evidência das coisas actuais. Ninguém no mundo da ciência me fascinava mais do que Albert Einstein. Servindo-se apenas de umas folhitas de papel, com o prodígio do seu génio, foi garatujando uns cálculos, formando umas equações e produziu a teoria que relativiza, relaciona e interliga, a massa e a energia, o espaço e o tempo (E = mc2).
Constato porém consternado que sobre o tempo tinha conhecimentos apenas razoáveis. Onde estão: - o tempo completo, o tempo completo prolongado de 45 e o de 42 horas, o
tempo que conta para a aposentação em quantidade igual a si mesmo. O tempo que acresce o tempo em 25% e contou até princípios de noventa e depois deixou de contar, o tempo que ainda acresce se se fizerem duas vezes os descontos para a C.G.A., e enfim para abreviar esta lista fastidiosa de enumerações, o tempo dos que já pagaram o tempo e tornaram a pagar o acréscimo de 25% do tempo e que nunca beneficiarão deles, pelas alterações das regras da aposentação...? Quem percebia mesmo de tempo era o senhor João de Deus, não o colega, nem o poeta, mas um funcionário da secretaria dos H.C.L., que por isso mesmo, penso eu, foi estrategicamente promovido e colocado na A.R.S. de Lisboa, de onde já deve ter fugido para a aposentação, para não ser penalizado no seu próprio tempo...Teve sorte; há quem por tanto saber tenha ido parar à cova escura de onde só se sai no Juízo-Final, segundo o dogma, e, um pouco mais tarde, na minha opinião... Há dias vi um documentário: - Algures em Africa um campo de refugiados com centenas de crianças, esqueletozinhos ainda vivos, com ascite e olhos esbugalhados de espanto e de horror, parecendo enormes ovos estrelados de gema escura, que se não fecham à invasão das moscas, nos rostozinhos já encaveirados pela morte próxima. Confesso que a seguir fui almoçar, talvez houvesse no meu subconsciente um desejo masoquista de auto-punição e quisesse danificar o endotélio e estreitar o lúmen da canalização arterial, com a enxurrada das LDL do bifinho, frito em colesterol, com que me fui empanturrar ... Penso que não... É a besta ambígua que há na natureza humana e que passei três décadas e tal, a ver na clínica, que desmesura e acrescenta tudo o que connosco se relaciona, e, mingua ou anula, tudo o que só aos outros dói... Talvez por isso cada vez gosto mais dos meus três cães e dos outros animais, incluindo os pequenos animais, que me hão-de (espero que daqui a muitos anos) tratar do cadáver e polir a ossatura, já que não pretendo subir ao céu por vias da cremação.

João Miguel Nunes Rocha
(Publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS • Julho/Agosto 2010)

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Episódios Fugazes de Lucidez


Já fomos à lua, já lançámos bombas atómicas matando de uma penada dezenas de milhares de seres humanos, já clonámos animais e até talvez homens... mas tanto como as descobertas científicas que me deixam estarrecido e maravilhado, sempre me fascinou o poder espantoso das palavras.

Escolha-se um acto horrendo, deixe-se que uma criança o descreva, e, na crueza singela com que o faz, o acto nada perderá de horrível. Coloque-se o mesmo acto nas mãos de um advogado talentoso e com o “dom da palavra”, e, ele burilará a linguagem suprimindo-lhe as arestas que ferem e que chocam, arredondará as frases agudas e cortantes, e, como por magia, o nosso horror transformar-se-á em aceitação, talvez até que aquiescência...

Este poder modelador espantoso das palavras, atinge o sublime na literatura mas tem aplicação em todas as profissões e artes.

Através dele: - o pintor medíocre mas imaginativo e fluente, consegue convencer-nos não só de que os borratões e gatafunhos com que pintou a tela são arte, mas que o facto disso se não nos tornar imediatamente evidente, se deve à nossa tacanhez e falta de espiritualidade... o colega persuasivo consegue que a eficácia placebo do medicamento quase supere a eficácia farmacológica, e à s vezes até acertar na cura quando errou o diagnóstico e a terapêutica.... o sacerdote eloquente (seja de que credo for) consegue trocar bens presentes por bens futuros e do outro mundo e nos nossos políticos desonestos, hábeis e sagazes (tríade em vias de extinção) conseguem não só vender-nos gato por lebre como provar-nos as vantagens de cozinharmos e paparmos o “bichano“…

É o que vai acontecer com a saúde que apesar de em queda acentuada é das poucas coisas que ainda funciona razoavelmente no nosso Estado, dito de Direito. Sendo a saúde tendencialmente gratuita só pode obviamente representar uma despesa para o pagador final que é o contribuinte. Não se percebe, mesmo que se possua uma imaginação fecunda, como é que privatizando-a, isto é, interpondo entre o utilizador e o pagador uma entidade que a explore arrecadando lucros, os custos podem diminuir. É evidente para qualquer indivíduo celebrado, mesmo para aqueles em que a inteligência contribui escassa ou irrelevantemente para o peso da sua extremidade cefálica, que aos custos que houver somar-se-ão os ganhos que a entidade exploradora fizer seus, e o custo final, é o que resultar da adição das parcelas...

Contradirão os defensores que haverá melhor gestão, racionalização dos custos... mas isso tanto é possível tanto agora como depois, tanto no que é público, como no que é privado.

Mas há muito que os grupos parasitários, despóticos e rapaces, que detêm o verdadeiro poder e que da sombra dos bastidores, dirigem a aparente autonomia política e mediática, elegeram a doença como mais um alvo a sugar e portanto isso acontecerão inexoravelmente, como fica sobejamente provado pelo estado lamentável a que chegámos, conduzidos qual rebanho, pelos nossos políticos, os mesmos com poucas excepções desde há vinte ou trinta anos.

Esbanjou-se o dinheiro do país em estádios e expos, mordomias e enormes falcatruas. Destruiu-se o tecido produtivo a troco dos milhões de Bruxelas que desapareceram sem rasto e sem benefícios em bolsos sem fundo. Criaram-se entidades supervisoras pagas principescamente para impedir os cartéis e limitar a usura e eles falharam redondamente. Fizeram-se negócios ruinosos para o erário público e a candura virginal com que todos estes responsáveis afirmam a sua inocência contunde com a nossa boa-fé... que raio, nós bem vemos pela maneira elegante como seguram e exibem a Montblanc, opondo o polegar aos outros dedos... que eles até são primatas.

Alteraram-se as regras de aposentação aos portugueses em fim de carreira, ou até depois da reforma, o que em linguagem jurídica se chama incumprimento do contrato e em português vernáculo roubo.... Alteraram-se as leis laborais a favor dos nossos grandes empresários precarizando-se o emprego e mutilando-se a esperança.

O cidadão ingénuo que acreditou que o Estado ainda é o guardião do direito e da honradez e lá depositou o seu aforro, viu-se esbulhado pela alteração das regras, e para cúmulo recebeu uma carta do IGCP a informar que o não foram... tanta desfaçatez constituiu na minha opinião, um ardil táctico (estes indivíduos versados nas coisas do dinheiro e da usura não são ingénuos nem susceptíveis de cometerem erros crassos), para gerar desconfiança e induzir a mudança das poupanças para BPN, BPP... cujo epílogo foi a farsa, ou antes o drama que foi pegar em enormes verbas do contribuinte e dá-las não às vítimas (estas perderam definitivamente o seu dinheiro) mas aos ladrões...

Ultimamente tornei-me atreito a episódios de clarividência, estado em que deduzi o supracitado, e também que há uma relação directa entre certas palavras que perpassam cada vez com mais frequência nos meios de comunicação, se fixam nas mentes, criam vulto: - Eutanásia, morte digna, encarniçamento terapêutico, testamento vital, coitadinho para este infeliz era melhor morrer... E, no reverso da mesma moeda privatização da saúde, contenção de custos, salas de cuidados continuados... a passo e passo procurar-se-á atingir o ideal, que é o cidadão morrer de um ataque de alegria, no dia em que passar à aposentação.

A miséria atinge um quinto da população, o desemprego alastra como a peste nas cidades medievais, de forma avassaladora, mas apesar disso qual Arauto da Boa Nova o Senhor Primeiro-Ministro vem todos os dias dar-nos as boas notícias cheias de superlativos: - inaugurou o maior do mundo, fez melhor que todos os seus antecessores isolados os juntos...

O Senhor Engenheiro não percebe nem tem nenhum amigo verdadeiro que lhe diga que já não é convincente mas apenas... repetitivo...

Por contingências da vida e inerência da natureza humana o rol de actos que podem denominar-se de altruístas são na minha opinião, notoriamente escassos:

- O cruzado ia pelo céu;

- O navegante pela fama, pela fortuna e pela baforada adrenérgica da aventura;

- O próprio homem bomba talvez se faça explodir por Alá e pelas setenta virgens.

Só os nossos políticos e alguns dos nossos colegas o fazem exclusivamente pelos outros: eis a essência do altruísmo diria mesmo a essência de um “altruísmo excessivo”.

Foi norteada pelo altruísmo que uma senhora da nossa política procedeu à elaboração do IMI pelas regras CIMI onde por razões ecológicas, ambientais e outras igualmente meritórias se penaliza menos o palacete com piscina, campo de ténis e dois hectares de relvado do que a casita dos subúrbios com quintalinho envasável e garagem individual. O Decreto-Lei que regula a aplicação deste imposto, também chamado sinistramente de Imposto Municipal sobre Incautos, constitui uma pequena obra-prima do terror, sem recurso ao sobrenatural.

Foi também norteados pelo altruísmo e pelo dever pátrio que os colegas do Ministério da Saúde procederam à elaboração da lista de prioridades de vacinação em relação à gripe pelo vírus H1N1.

Se a gripe fosse a pandemia trágica que nos anunciaram e não o embuste que parece que foi, teriam conseguido eliminar de uma vez por todas muitos velhos e grande parte dos doentes crónicos mais graves, que se agarram à vida como as lapas às rochas da rebentação, arrastando o país para o abismo do défice e da insolvência.

E, foi devido ao maior e melhor dos altruísmos que o Senhor Primeiro-Ministro se fez vacinar sob os holofotes mediáticos em primeiríssimo lugar. O Senhor Primeiro-Ministro para quem a gripe teria representado dois espirros e uma tossezinha, bem sabe com a sagacidade que o caracteriza como os portugueses lamentariam a sua indisponibilidade para vir às horas do jantar dar as boas notícias.

Reparei que o Senhor Primeiro-Ministro suava. Seria do calor das luzes, da “síndrome da sudurese altruística já descrita por Hipócrates” ou do medo da picadinha?

Os Senhores Deputados ou Senadores (termo que preferem) que já há alguns anos nos deram prova soberba do muito altruísmo que lhes rege e enforma os actos, ao aprovarem para si mesmos, direito à reforma por inteiro ao fim de quatro anos de carreira contributiva, deram-nos mais um exemplo de abnegação ao encimarem a lista de prioridades de vacinação.

As prisões regurgitam de pobres diabos, drogados, pequenos delinquentes e até de pessoas de bem, enquanto os facínoras, os padrinhos (sem os códigos de honra de Dom Corleone) se passeiam entre nós, nos exibem a sua riqueza numa ostentação impúdica de novos-ricos e fazem sentir aos nossos filhos, que nós seus pais, não passamos de falhados...

O meu ego pretende que as afirmações que fiz resultam do uso de uma inteligência ainda razoável e de um acúmulo de sabedoria, mas admito estar redondamente enganado. Dos aspectos macroscópicos da velhice estamos todos abundantemente informados e muitos de nós fartos... mas no seio dos tecidos, onde a morte e as adaptações celulares à isquemia coexistem ainda não sabemos tudo, e, portanto admito que estes episódios fugazes de lucidez se devam à  produção de alguma substância química que induza um delírio coerente ou incoerente.

E neste país à beira mar, cheio de sol graças ao bom clima e cheio de sucesso e de progresso graças à boa governação, grassa o desânimo, um desânimo viscoso e palpável que deixa nos rostos traços indeléveis de tristeza, como nós médicos, nos habituámos a ver nos doentes terminais que perderam a esperança e sabem que a morte é o fim definitivo e inexorável.

E têm razão nesta perda de esperança, porque a desfaçatez ignóbil com que lhes mentem, esta alteração constante e unilateral dos contratos depois do cidadão ter cumprido a sua quota-parte, sob o pretexto de maior justiça, de maior sustentabilidade, disto ou daquilo... blá, blá, blá... significa o que no fundo todos sabem, que chegou ao fim o Estado de direito e que o refrão da velha canção, recuperou toda a sua actualidade: - Eles comem tudo, eles comem...

Agora até nos podem acenar com vantagens, mas em breve, nós médicos, faremos também parte da ementa.

João Miguel Nunes Rocha

 
(Publicado na Revista da Ordem dos Médicos de Fevereiro de 2010)

domingo, 27 de maio de 2012

Os números negativos



Os velhos sabem que a morte usa uma força constante para atrair o tempo. Depois de uma ligeira ascensão somos sempre puxados para baixo até ao embate na tela escura do fim, num movimento uniformemente acelerado…
Os jovens encaram os velhos com o desprendimento e com a arrogância de quem pensa que entre os vinte e os sessenta  anos vai uma distância incomensurável de tempo; Se soubessem porém como é fugaz essa centelha de quarenta e tal anos que separa  a juventude da velhice, teriam todo a sabedoria  que só o viver dá…
É por isso que contrapor-se um sofrimento atroz presente nos medos atávicos do subconsciente humano a uma morte “distante e indolor”… é uma ratoeira vil e vincularem-se as pessoas a um compromisso futuro como o testamento vital, não pode ser motivado pelo desejo de se lhes querer fazer bem. Há outras razões subjacentes, intenções inconfessáveis, armadilhas  miseráveis como as letras miudinhas ou o sentido inacessível das apólices, minadas de ardis jurídicos  e semânticos.
Onde e para quantos há acesso ao tratamento da dor ou de outros cuidados paliativos?
Em que país fantástico se viu esse encarniçamento terapêutico, esse obrigar os doentes a viverem tanto como Matusalém? Se for um banqueiro, um jogador de futebol… até admito que possa haver certos exageros, mas o cidadão comum não tem   sob este aspecto de ter algum receio… Como individuo honesto que considero ser, como pessoa que já esteve na eminência da morte como médico e como doente, garanto-lhes que não há que recear essa utopia de que nos querem convencer… Quando a morte se acerca e nos arrefece os pés com o seu bafo gelado, a percepção aumenta e há o receio, isso sim, de que alguém motivado por um “altruísmo e uma piedade exageradas”, não insista o bastante na nossa reanimação e nos deixe partir sem grande oposição.
Mesmo no moribundo que agoniza esvaindo-se em melenas negras de cheiro pestilencial, e, em vómitos de mucosidades verdes horríveis de se verem, a morte é sempre digna. Nada tem de indigno o ser humano que luta desesperadamente contra a dor, contra o medo e contra a angustia… Indigno é não lhe aplacar a dor, não lhe mitigar o sofrimento e contrapor-lhe um convite para a morte…
Claro que perante a dor lancinante da metástase que carcome, comprime e corrói… face à ferida pútrida que não sara e baba pus e bocadinhos de carne do próprio ainda vivo, mas já em decomposição e escava, escava, escava… Acossado pela dispneia horrenda que chia, silva e pia em haustos desesperados, e, cava profundos desfiladeiros entre as costelas e crateras supra claviculares de tiragem, fazendo o infeliz assemelhar-se a um barco naufragado a que o mar arrancou o costado e expôs a quilha e o cavername e matizou tudo com os livôres azulados da cianose… claro, se lhes apontarem como única saída o além, muitos no seu desespero aceitarão… mas a morte não é um tratamento, é o fim do mundo para quem morre e propô-la como alternativa é de uma enorme maldade, incompatível com um ser que na a sua megalomania chega a afirmar-se feito à imagem de Deus, não de um Deus abstracto e difuso, mas de um Deus concreto com atributos e características, como omnipotência, omnisciência e bondade e que se assemelha em todas as religiões e que fez os homens à sua semelhança e os dotou de alma… ao contrário dos outros pobres animais…
Esse Deus cuja existência se não provou ainda, tem tantos crentes, tão grande aceitação, porque o ser humano consegue lidar com o extermínio dos velhos, dos fetos, dos doentes, dos débeis ou seja de quem for sem grandes contemplações, mas quando se trata de si próprio invade-o um desespero insuportável, e, não havendo forma de eximir-se à evidência inexorável da sua própria morte, imagina e concebe uma alma e um além, num mecanismo de defesa contra o pavor dos pavores, a concepção aterradora do seu próprio fim, o que na minha opinião, prova sobretudo a nossa capacidade de sonhar .
Imagine-se uma cripta imensa com centenas de caixões abertos com o defunto deitado; isso não nos causa grande horror, é até um tema recorrente dos telejornais; tente imaginar-se que além naquele ataúde somos nós e ver-nos-emos percorridos por um medonho e horroroso calafrio, que nos gela o sangue e nos prende a respiração.
Se se quer ficar com um imagem digna de cada um e se a dignidade é máxima no auge da vida, como parece ser opinião actual e consensual, instale-se em cada cidadão um detector subtil de decadência e logo que este comece a dar sinal, atraia-se o cidadão a uma “vipalhada”, tirem-se-lhe umas fotografias e a seguir, mate-se o cidadão súbita e instantaneamente para que este não suspeite e não sofra, e, envie-se a fotografia à família, devidamente emoldurada para enfeitar a sala e constar para a posterioridade…
Se os cérebros sobredotados que nos orientam e alumiam a nós pobres cidadãos vulgares querem evitar a situação em que a decisão da subscrição da eutanásia ou do testamento vital se baseie em fantasias, crie-se uma fábrica de ampolas de cianeto de potássio ou similar e instalem-se estas ampolazitas miniaturais nas talocas dos dentes cariados, o que entre nós é uma constante, já que a medicina dentária só existe na privada onde um “pivot” custa mais que um prédio na baixa pombalina, e providos deste interruptor da vida ao alcance da ponta língua, como a maledicência, as pessoas perderão o receio de que as obriguem a viver por “obstinação terapêutica” e adiarão a decisão. Talvez a exportação do medicamento a que podia chamar-se “simplexpax” e tirar patente, fosse um êxito e melhorasse o nosso índice de exportações e até talvez motivasse mais partidas para o além do que a eutanásia e o testamento vital.
            Mas se o que se pretende é “tratar” as pessoas cuja produtividade vale menos que a sopa que comem, tatue-se-lhes no lóbulo da orelha um número negativo para introduzir alguma ordem e justiça na “solução”.É profundamente injusto que o cidadão acabado de chegar à reforma ou à invalidez, seja morto iatrogènicamente à frente de outro que já ande a passear-se há dez anos…Algures, numa colónia penal francesa procedia-se à execução na guilhotina de seis condenados. Após a degolação de cada um, os ajudantes removiam o corpo da báscula e o carrasco pegava na cabeça pelas orelhas e exibindo-a aos espectadoras dizia: - Em nome do povo francês fez-se justiça -. Li a descrição friamente, tentei até raciocinar e perceber se o condenado teria ainda a percepção da cabeça a descer ou a do cesto onde ia cair a aproximar-se, e, de repente estremeci estarrecido ao ler, que eram sempre decapitados primeiro os de menor culpa, para os poupar ao horror da execução dos outros… Ainda hoje o meu senso de justiça estrebucha em safanões e sobressaltos, quando penso nisso… A vida é só uma e acabá-la primeiro é aumentar e não diminuir o castigo… isto na minha opinião claro.
            Justo, justo seria a conversão do tempo em euros, sendo a lista ordenada segundo o desfalque que em cada momento o inválido, o reformado, o incapaz o débil ou enfim o “número negativo” representasse para o erário público, depois de lhe terem sido creditados os descontos para a Segurança Social. Reconheço porém, que tal propósito seria inviável e portanto absurdo, porque nesse caso muitos dos nossos gestores, administradores, políticos relevantes, seriam “tratados” mal chegassem à aposentação… Teria até de se inventar a” morte retroactiva”… alguns vão ganhar num só dia a  reforma  anual, de mil dos outros…
            Mesmo na morte pedida com veemência e convicção pelo próprio, não creio que se possa aduzir de imediato que este quer morrer… talvez se trate apenas de uma súplica para que lhe digam que o amam, que ainda é apreciado… e o pudor, a queda abissal da sua auto estima só encontrem este modo acanhado de expressão...O velho, olhado com dureza pelos seus, que lhe fazem sentir que já nada faz na casa que foi ou é sua, que passa a recear e a sofrer a cada olhar que lhe lançam os filhos, os netos, a família que ama ou que amou… carente de uma migalha de apreço ou de bondade, afastado da mesa de jantar porque lhe criaram nojo, esse velho, esse doente ou seja que miserável for, vai querer esconder-se do horror de si próprio e aceitar que o matem, mas isto não é evolução: é um horrível mundo novo, é entrar para um inferno pior do que o descrito por Dante, é reentrar na caverna de onde ainda há pouco saímos…
            Quando ardem “lares” e se constata que os velhos, os doentes, os loucos, eram amontoados em caves, enjaulados por grades que o fogo transformou em ratoeiras mortais, é consensual nas famílias que o lar sempre lhes parecera um “paraíso terreal” e que viverem cem num quarto para dez, embelichados em prateleiras, como os defuntos importantes nos túmulos finos, foi uma autêntica surpresa...
            Não se devem encará-los com dureza, porque todas as coisas bidimensionais têm o direito e o avesso e em todas as coisas humanas há a versão do próprio e a versão da contraparte e analisados com imparcialidade a ambos assiste, quase sempre, parte da razão. Os filhos do velho, do AVC, do neoplásico… ou qualquer dos seres humanos, a quem a vida pregou a partida cruel de privar da autonomia suficiente para se bastarem a si próprios, têm muitas atenuantes: - trabalham demasiado e longe, chegam do emprego a desoras e têm ainda os filhos e os trabalhos domésticos, vivem em casas acanhadas onde se atabafa e onde não há espaço nem privacidade, não têm posses para contratar ajuda, eles próprios foram encafuados em infantários aos três meses de idade, passaram o tempo com estranhos, foram educados pelos amigos e por programas estupidificantes de televisão onde se identificaram com personagens dúbias…e num mundo assim traçado os afectos não medram, os laços familiares diluem-se e como é óbvio, é preciso não só disponibilidade como grande dose de ternura, para tolerar a presença do encargo.
            Não sou de esquerda nem de direita, nem do centro (que não o há) e não acredito nem nuns, nem nos outros. Penso que quase todos se movem sobretudo pelos seus próprios interesses. É preciso repensar o mundo, colocar como prioritário o útil à maioria e não a maioria andar a ser esbulhada no interesse de alguns… Urge mudar de actores políticos, estes como num pequeno carrossel de feira pobre, reaparecem constantemente; parecem células embrionárias pluripotênciais... girandam entre cargos e tacharia. Os salvadores de hoje já foram os coveiros de ontem e vice-versa…
            Em criança o monstro dos meus pesadelos era um polvo; branco, gelatinoso, com olhos pretos, fixos e maus. Depois não sei porquê o polvo metamorfoseou-se numa mulher seca, vestida de hábito negro de face cerea e adunca e de olhos pretos, parados e cruéis como os do polvo; as feições perderam o tremelicar balofo do cefalópode e fixaram-se num sorriso de bondade estática e imutável, inacessível a qualquer súplica ou sofrimento, gélida e impiedosa, com a ideia fixa de bem fazer, para ganhar o próprio céu… sintetizável  nesta frase que aprendi algures nas igrejas: - de que vale salvar mil almas se se perder a própria alma… há nela a essência de todo o egoísmo humano… isto na minha opinião claro.
            Agora já velho os meus medos cristalizam-se num ser híbrido ou “mutante” de agiota e de ave necrófila, que se alimenta da miséria e da morte e que em breve tomará conta da saúde e determinará quem vai morrer e quem vai viver, pondo de um lado da balança a vida e do outro lado o seu valor em cêntimos…
            Acredito sinceramente que a maior parte dos colegas que defendem a eutanásia, o testamento vital ,ou qualquer outra forma de compromisso com a morte, o fazem honestamente e que acreditam que estão a agir em conformidade com os interesses dos seus doentes; não sou, nem pretendo ser, o “dono da razão”… Mas os médicos já ocupam um lugar pouco relevante nas esferas de decisão e em breve serão apenas os “trabalhadores médicos” como um colega com razão, disse… A “interrupção voluntária” da velhice ou da doença vai ser um êxito, como o é, a interrupção voluntária da gravidez, que corre lindamente e superou todas as expectativas… Há quem já a use em vez da”  camisinha”…
            São as palavras simples que combinadas de certa forma, produzem os poemas mais belos e as obras-primas da literatura e é com elas que as mentes laboram, escavam e tornam os pensamentos profundos. As palavras complexas, esquisitas, causam emperros na fluência das ideias e ditas em voz alta soam pretensiosamente. Foi com uma mescla de gente simples, vulgar, e só muito esporádica e raramente com génios, que a humanidade atingiu o cume de onde começa a “descer”… Alterar as proporções pela “solução” é um déjà-vu usado pelos nazis e muitos outros.
            As famílias que já tinham feito o luto dos seus velhos ao colocarem-nos nas cadeiras sem braços dos lares, onde absortos, com os olhos fixos num mundo ido e vazio, se quedavam hirtos, mudos e desolados à espera do último acto, em que embora presentes já nada verão… Estão a trazê-los de volta à doce casinha… Espero que no alarido alvoraçado das manifestações enternecedoras desde renascimento dos afectos pelo velho não se esqueçam de lhe ir dando a sopinha… claro que saber se o velho criou laços de ternura, com os irmanados pelo sofrimento de terem sido postos fora da vida ainda vivos e sentados a monte na mesma salinha, partilhando um destino inexorável comum, claro que sabê-lo, é irrelevante… A alegria desmesurada do regresso à terna família, supera e compensa tudo… o próprio provedor dos gerontes, se o houvesse, o diria…
            Há dias que vivo obcecado por uma ideia fixa; tudo começou num sonho: - Andava a cavar no quintal e encontrei uma “Lâmpada de Aladino”.O génio que de lá saiu propôs-se satisfazer-me um desejo e eu pedi-lhe, que usasse o seu poder absoluto, para mudar o estado calamitoso a que o país chegou… O génio concedeu-mo e confidenciou-me que ia começar por “deslocalizar” o Parlamento, os Ministérios e também a Presidência da República e agrupá-los a sudoeste, nesse lugar maravilhoso sempre cheio de sol, quando o há, situado a meia distância entre o padrão dos descobrimentos e o forte da Trafaria. Algures na noite um estrondo atroador despertou-me… desde então que tento deduzir, debalde, numa mono mania fremente, constante, se e como é que o génio, ia colocar o edifícios à superfície?…

João Miguel Nunes Rocha
(Publicado na revista da Ordem dos Médicos de Janeiro de 2012)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Reflexões de um geronte

“Admiro profundamente o nosso Primeiro-Ministro Sócrates, sobretudo pela luta quixotesca, reveladora de enorme coragem, que empreendeu contra os poderosos lóbis que são: os reformados, os funcionários públicos, os doentes.
Aludindo aos primeiros, é inadmissível que os reformados, a maior parte dos quais nada produz, continue a revelar apetite voraz e a querer comprar medicamentos, para óbvia e malevolamente, aumentarem o tempo de encargo que sobre os outros representam.
Urge pois, diminuir-lhes as pensões mesmo criando leis retroactivas e alterar unilateralmente os contratos em detrimento dos velhos. Criem-se-lhes impostos suplementares...
Há tempos visitei uma dessas pré-morgues que são os lares dos pobres diabos que são os velhos em geral, e os velhos pobres em particular e fiquei impressionado com o apego à vida que transparece do seu olhar senil. Não percebem como é inútil essa vida quase vegetativa e que estariam muito melhor mortos?... É urgente pois, (na minha opinião), que o nosso Primeiro-ministro legalize a eutanásia e depois lhe aplique um programa tipo simplex, de modo a evitar as delongas do consentimento do próprio, transferindo esse papel para a família ou melhor ainda para uma comissão política (Unidade Missão), o que terá vantagens de repercussão imediata em vários domínios da governação: desde logo diminuirão os encargos com a segurança social com maior sustentabilidade desta, haverá diminuição do défice e diminuirá o índice de envelhecimento da população, sem que as nossas jovens tenham de parir, ou os nossos mocetões de maçar-se com o acto da procriação.
Retomando o assunto em apreço acresce que é profundamente injusto que após uma carreira contributiva equivalente, a uns lhes dê logo um ar, e outros persistam em viver para além do razoável, onerando todos os contribuintes. Diz-se, que um certo ditador, que obviamente não tinha só defeitos instituiu para os indigentes mais retardatários o chá da meia noite, de que consta que os velhos não regressavam; vá se lá saber onde a verdade se mistura à calúnia e à fantasia…
Quem teve a eloquência suficiente para convencer os portugueses, de que fora necessário aumentar os impostos que se prometera baixar, e, de outras enormidades do género, facilmente convencerá os velhos da bondade da medida e de que a quietude do outro mundo, é de longe preferível às ansiedades da reforma insuficiente, ou à miséria da solidão sem afectos…
Creio que esta medida não levantará contestação dada a vestutez do alvo e a propensão natural das famílias em admitir as vantagens da urna ou do cenotáfio, em relação à presença física e viva dos gerontes.

Também não é de esperar da parte dos médicos urna oposição renhida á ¡implementação prática da medida. Tendo todos por inexorabilidade da morte um prognóstico fatal, arredado está o único parâmetro objectivo, restando a arguição com substantivos como sofrimento, vida, dor... que mesmo enfatizados por adjectivos como insuportável, válida, atroz... não deixarão de ser subjectivos e de grande plasticidade. Espero que tal como na interrupção voluntaria da gravidez, onde fugindo-se ao cerne, se centrou a discussão nas hipóteses do inicio da vida humana, sendo a certeza de que esta se inicia na concepção, abalada por teorias alarves que colocam o princípio em regiões nebulosas onde o juramento de Hipócrates e a lei do aborto não colidam visivelmente... No tema em apreço adoptar-se-ia urna posição ambígua e prudente, em tudo semelhante.
Já vi a expresso de tristeza infinita dos velhos e dos doentes terminais, que escorraçados de casa e da família, foram abandonados para morrer em lares como se fossem amortalhados e colocados no caixão ainda vivos.
Já vi a morte miserável e cruel de alguns seres humanos, que já defuntos, apresentam ainda os traços indeléveis da sua agonia atroz. E. já vi os rostos medonhos deformados pelo terror e pela angústia do fim, do seu fim... Mas nunca vi ninguém que quisesse morrer... O que no caso dos velhos é absurdo... Se não fosse a isquemia cerebral, o alzheimer ou outras doenças que alteram a razão, perceberiam que são um tropeço para si próprios e um encargo e/ou um adiar intolerável da herança, para a família,
O estado, essa pessoa de bern, que lhes paga cada vez mais relutantemente as cada vez mais magras pensões, alterando-lhes os contratos de aposentação de forma unilateral e vil, está no fundo a contribuir para a longevidade, já que a carência alimentar prolonga a vida e um regime de forne substitui com vantagem as estatinas, que são caras e inacessíveis á maior parte dos gerontes. Corno os velhos em geral, desejaria não morrer ainda, mesmo que viver signifique apenas um fluxo incoerente de pensamentos, (como este), e alapar-me contra um muro virado a sudoeste para que o sol ajude o metabolismo a aquecer-me os ossos. Receio porém receber em breve urna convocação para a E.G.S.S. onde me será administrada a injecção simplex, que panaceia para todos males, curará os meus, e me enviará para regiões paralelas onde continuarei a existir fraccionado, na seiva dos ciprestes, na substância de gerações sucessivas de ratos e de vermes e na urnazita, onde rara e esporadicamente os filhos se juntem e limpem ostensivamente a lágrima inexistente. Neste mundo mediático tão caro e aprimorado pelo Senhor Primeiro-Ministro que aparece nos canais do pequeno ecrã constante e simultaneamente corno se tivesse o dom da ubiquidade, e que apesar da imutabilidade dos temas (relato de um êxito em que o seu papel foi de relevância predominante e imprescindível) nunca é fastidioso... Porque não melhorar ainda mais e mais rapidamente o futuro, substituindo os velhos que nos foram deixando de morte natural ou iatrogénica, por clones de figuras de mérito, calculando-se este, por adição de créditos como um ilustre ex-bastonário (de mérito vitalício) quis fazer em relação aos médicos, recertificando-lhes o curso, ou transferindo-os para a ordem dos licenciados mendicantes...
Às vezas, nas horas estranhas de sonho-lucidez que antecedem o amanhecer, surpreendo-me a pensar num horrível mundo actual, em que os animais são criados para abate cm corredores semelhantes a linhas de montagem, os homens se tornaram to descartáveis como lenços de papel e os políticos são as marionetas, e as faces visíveis de um poder oculto, horrível e maligno, que se apossou do mundo, e que torna possível o extermínio de milhões de seres humanos e de nações, em norne da democracia, torna plausível que o nosso défice possa ser diminuído pela venda de dividas fiscais por 15% do seu valor, não haja o bastante para honrar compromissos ou manter as pensões, mas haja de sobra para Expos, estádios, OTAS e TGVs e então invadido pela hiper-lucidez do terro pânico, percebo que o esbulho dos cidadãos ainda mal começou, e que se não corrermos com esta gentinha, acabaremos rodos, com excepção dos do costume, com a trouxa dos sem-abrigo, ou na fila da eutanásia para nosso bern.

João Miguel Nunes Rocha
 (publicado na revista Ordem dos Médicos, na edição de Outubro/Novembro de 2010)