quinta-feira, 24 de maio de 2012

Reflexões de um geronte

“Admiro profundamente o nosso Primeiro-Ministro Sócrates, sobretudo pela luta quixotesca, reveladora de enorme coragem, que empreendeu contra os poderosos lóbis que são: os reformados, os funcionários públicos, os doentes.
Aludindo aos primeiros, é inadmissível que os reformados, a maior parte dos quais nada produz, continue a revelar apetite voraz e a querer comprar medicamentos, para óbvia e malevolamente, aumentarem o tempo de encargo que sobre os outros representam.
Urge pois, diminuir-lhes as pensões mesmo criando leis retroactivas e alterar unilateralmente os contratos em detrimento dos velhos. Criem-se-lhes impostos suplementares...
Há tempos visitei uma dessas pré-morgues que são os lares dos pobres diabos que são os velhos em geral, e os velhos pobres em particular e fiquei impressionado com o apego à vida que transparece do seu olhar senil. Não percebem como é inútil essa vida quase vegetativa e que estariam muito melhor mortos?... É urgente pois, (na minha opinião), que o nosso Primeiro-ministro legalize a eutanásia e depois lhe aplique um programa tipo simplex, de modo a evitar as delongas do consentimento do próprio, transferindo esse papel para a família ou melhor ainda para uma comissão política (Unidade Missão), o que terá vantagens de repercussão imediata em vários domínios da governação: desde logo diminuirão os encargos com a segurança social com maior sustentabilidade desta, haverá diminuição do défice e diminuirá o índice de envelhecimento da população, sem que as nossas jovens tenham de parir, ou os nossos mocetões de maçar-se com o acto da procriação.
Retomando o assunto em apreço acresce que é profundamente injusto que após uma carreira contributiva equivalente, a uns lhes dê logo um ar, e outros persistam em viver para além do razoável, onerando todos os contribuintes. Diz-se, que um certo ditador, que obviamente não tinha só defeitos instituiu para os indigentes mais retardatários o chá da meia noite, de que consta que os velhos não regressavam; vá se lá saber onde a verdade se mistura à calúnia e à fantasia…
Quem teve a eloquência suficiente para convencer os portugueses, de que fora necessário aumentar os impostos que se prometera baixar, e, de outras enormidades do género, facilmente convencerá os velhos da bondade da medida e de que a quietude do outro mundo, é de longe preferível às ansiedades da reforma insuficiente, ou à miséria da solidão sem afectos…
Creio que esta medida não levantará contestação dada a vestutez do alvo e a propensão natural das famílias em admitir as vantagens da urna ou do cenotáfio, em relação à presença física e viva dos gerontes.

Também não é de esperar da parte dos médicos urna oposição renhida á ¡implementação prática da medida. Tendo todos por inexorabilidade da morte um prognóstico fatal, arredado está o único parâmetro objectivo, restando a arguição com substantivos como sofrimento, vida, dor... que mesmo enfatizados por adjectivos como insuportável, válida, atroz... não deixarão de ser subjectivos e de grande plasticidade. Espero que tal como na interrupção voluntaria da gravidez, onde fugindo-se ao cerne, se centrou a discussão nas hipóteses do inicio da vida humana, sendo a certeza de que esta se inicia na concepção, abalada por teorias alarves que colocam o princípio em regiões nebulosas onde o juramento de Hipócrates e a lei do aborto não colidam visivelmente... No tema em apreço adoptar-se-ia urna posição ambígua e prudente, em tudo semelhante.
Já vi a expresso de tristeza infinita dos velhos e dos doentes terminais, que escorraçados de casa e da família, foram abandonados para morrer em lares como se fossem amortalhados e colocados no caixão ainda vivos.
Já vi a morte miserável e cruel de alguns seres humanos, que já defuntos, apresentam ainda os traços indeléveis da sua agonia atroz. E. já vi os rostos medonhos deformados pelo terror e pela angústia do fim, do seu fim... Mas nunca vi ninguém que quisesse morrer... O que no caso dos velhos é absurdo... Se não fosse a isquemia cerebral, o alzheimer ou outras doenças que alteram a razão, perceberiam que são um tropeço para si próprios e um encargo e/ou um adiar intolerável da herança, para a família,
O estado, essa pessoa de bern, que lhes paga cada vez mais relutantemente as cada vez mais magras pensões, alterando-lhes os contratos de aposentação de forma unilateral e vil, está no fundo a contribuir para a longevidade, já que a carência alimentar prolonga a vida e um regime de forne substitui com vantagem as estatinas, que são caras e inacessíveis á maior parte dos gerontes. Corno os velhos em geral, desejaria não morrer ainda, mesmo que viver signifique apenas um fluxo incoerente de pensamentos, (como este), e alapar-me contra um muro virado a sudoeste para que o sol ajude o metabolismo a aquecer-me os ossos. Receio porém receber em breve urna convocação para a E.G.S.S. onde me será administrada a injecção simplex, que panaceia para todos males, curará os meus, e me enviará para regiões paralelas onde continuarei a existir fraccionado, na seiva dos ciprestes, na substância de gerações sucessivas de ratos e de vermes e na urnazita, onde rara e esporadicamente os filhos se juntem e limpem ostensivamente a lágrima inexistente. Neste mundo mediático tão caro e aprimorado pelo Senhor Primeiro-Ministro que aparece nos canais do pequeno ecrã constante e simultaneamente corno se tivesse o dom da ubiquidade, e que apesar da imutabilidade dos temas (relato de um êxito em que o seu papel foi de relevância predominante e imprescindível) nunca é fastidioso... Porque não melhorar ainda mais e mais rapidamente o futuro, substituindo os velhos que nos foram deixando de morte natural ou iatrogénica, por clones de figuras de mérito, calculando-se este, por adição de créditos como um ilustre ex-bastonário (de mérito vitalício) quis fazer em relação aos médicos, recertificando-lhes o curso, ou transferindo-os para a ordem dos licenciados mendicantes...
Às vezas, nas horas estranhas de sonho-lucidez que antecedem o amanhecer, surpreendo-me a pensar num horrível mundo actual, em que os animais são criados para abate cm corredores semelhantes a linhas de montagem, os homens se tornaram to descartáveis como lenços de papel e os políticos são as marionetas, e as faces visíveis de um poder oculto, horrível e maligno, que se apossou do mundo, e que torna possível o extermínio de milhões de seres humanos e de nações, em norne da democracia, torna plausível que o nosso défice possa ser diminuído pela venda de dividas fiscais por 15% do seu valor, não haja o bastante para honrar compromissos ou manter as pensões, mas haja de sobra para Expos, estádios, OTAS e TGVs e então invadido pela hiper-lucidez do terro pânico, percebo que o esbulho dos cidadãos ainda mal começou, e que se não corrermos com esta gentinha, acabaremos rodos, com excepção dos do costume, com a trouxa dos sem-abrigo, ou na fila da eutanásia para nosso bern.

João Miguel Nunes Rocha
 (publicado na revista Ordem dos Médicos, na edição de Outubro/Novembro de 2010)

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