quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Extraterrestre Enigmático

Já morri há dois dias, já fui amortalhado, já entrei em decomposição e tresando, mas, não consigo adormecer…
 Já vi a doença mutilar ou matar de forma requintadamente atroz, mas a percepção descrita no filme de Ingmar Bergmam persiste inalterada na sua intensidade de soco, contendo em si um inferno tão pavoroso como o subentendido, nas ameaças de qualquer religião que o aceite e o preze:- haverá choro e ranger de dentes .-
 Não é preciso porém imaginar cenários, basta observarmos o nosso civilizado mundo.
 O homem olha para os seus três filhos magros como esqueletozinhos, olha para a meia-dúzia de olhos famintos, arregalados e ávidos que lhe seguem todos os movimentos, olha para as três bocas que se abrem, que se fecham e que mastigam, enquanto só ele come e pára; olha para os olhos da sua mulher tristes, e onde fulgem uns laivos de censura e de desdém, olha para os olhos dos seus velhos tristes, e onde assoma o medo e uma imensa desolação, e acabrunhado, sentindo que atabafa, levanta-se e sai. Dentro dele fervilha e cresce uma raiva de querer morder os que o esbulham, o oprimem e o enganam…E todos os dias se formam novos magotes destes homens e destas mulheres, enraivecidos porque encurralados, entre a fome dos seus e a sua impotência para os saciar…Juntem-se alguns milhares destes homens e destas mulheres e lá virá outra vez  a guerra com o seu rol de mais fome, de mais morte e de muita gente, muita gentinha a ganhar. Talvez tudo tenha sido cuidadosamente planeado e tenha o acordo tácito do novo Hitler XX.
 O velho grego cercado por esta gente que lhe tornou a morte preferível à vida, deixou bem expresso o motivo porque se matava.
 No nosso país conhecido pela amenidade do seu clima, num dos Invernos mais suaves de que há memória, os velhos morrem às mancheias “transidos do frio ou da pneumónica que não houve”, e não há ninguém com voz audível, que grite “o rei vai nu”, tolhidos por este medo que nos avilta e denigre, empequenece e mói. Neste clima de terror-pânico induzido e atiçado pelos mandatários, propício a todos os abusos, os cidadãos atónitos e estarrecidos rezam e acalentam a esperança ténue, de que a crise se resolva e o país se cure, mesmo matando todos os doentes, todos os velhos, todos os dementes, todos os deficientes; e o poder instituído fá-lo, e para manter a ilusão, vai exterminando também a classe média com impostos, confiscos, taxas ou Ciclon B…
 Dos pedidos de desculpa passaram às premunições de desgraça numa persistência avassaladora e feroz de hienas, que se atiram ao leão e o devoram vivo, depois de se certificarem cautelosamente, que este perdeu as garras e os dentes, a pujança e a força. Querem que o tom grosso com que nos ameaçam transmita credibilidade e firmeza, mas há nele um falsete de tenor eunuco.
 Elegemo-los porque nos enganaram e porque desejávamos um futuro mas eles não vieram para nos salvar nem para construir ou semear. São mandatários do poder maligno que se apossou do mundo e vieram para esgaravatar na nossa miséria e aprofunda-la. Vieram ao saque…
 A sua actuação amestrada não exige ideias, que aliás não têm, e por isso quando espontâneos, confrangem-nos pela singeleza: tirar gravatas para poupar energia, exportar pastéis de nata, “plafonar “ a Segurança Social aumentando-lhe a sustentabilidade…Hoje dizem uma coisa, amanhã dizem outra, com a mesma cara e a mesma desfaçatez…
 De que massa é feita esta gentinha, que chega a pensar ter graça, quando ironiza sobre o regresso dúbio dos subsídios que roubaram, indiferentes ou ofuscados pelo próprio esplendor sem sequer verem, os cumes do desespero e da angústia dos seres humanos infelizes, para quem esse dinheiro era vital. Que massa enformará esse senhor que deu espectáculo público, em lamentos plangentes, sobre os montantes que aufere e não suscitou sequer a verificação da inconstitucionalidade do confisco permanente dos dois salários anuais, aos funcionários públicos e aos velhos… Chegam ao desplante de quererem imputar aos cidadãos a culpa da dívida do país; que raio, eu nunca pedi empréstimos ao banco mas o meu vizinho fê-lo para ter uma habitação, e depois de muitos anos a paga-la, deixando de poder fazê-lo, o banco sem dó, ficou-lhe com o pago e com a casa mas manteve-lhe a dívida…Não enxergo a culpa do meu vizinho ou a minha, ou a dos que tendo-se endividado, continuam a pagar ou já pagaram…
  Após quase um ano de governação persistem nas lamúrias e desculpam-se com o passado, que são eles mesmos, e com a “troika”. Para além disso, o que fizeram?
 Aumentar todos os impostos, provando que as promessas pré - eleitorais foram um embuste.
 Colocar longe do cidadão do interior, tudo o que este, também paga.
 Alterar todos os contratos, logrando os portugueses e enxovalhando com uma nódoa indelével, a boa fé e a credibilidade do estado.
 Dizer aos nossos filhos, que não há lugar para eles na terra onde estão as suas raízes e os ossos dos seus antepassados
 Fazer negócios ruinosos, como o de vender por quarenta milhões de euros o que custou dezenas de milhares de milhões de euros ao contribuinte, e ao depositante também o seu pecúlio
 Vender aos estrangeiros o nosso país e a nossa independência, o que configura um crime de traição e como tal devia ser punido…
 Fazer os portugueses corar de vergonha pelo modo obsequioso, servil e abjecto, como se curvam aos poderosos e lhes dão o dinheiro do contribuinte esbulhado e tratado, arrogante e iniquamente.
 Privatizar, privatizar, privatizar. Taxar, taxar, taxar. Confiscar, confiscar, confiscar.
 Do pouco de bom que resta, atiraram-se agora ao SNS, e sob o pretexto de o tornar melhor e mais barato, vão privatiza-lo…
 Mesmo admitindo como certo, que a parcela dos lucros legítimos será integralmente paga, não pelo contribuinte, mas pelo extraterrestre enigmático responsável pelo nascimento e pelo crescimento de grandes fortunas entre nós, haverá, mesmo assim, a grande probabilidade dos privados intervenientes no negócio se deixarem possuir pela ambição (os ricos são-no porque amealham e não por dar) e depois de ferrarem os dentes na saúde, quererem desenterrar tesouros da doença, arrancar dobrões de ouro às terapêuticas, espremer a angústia em jorros de euros luzentes, depenicar na agonia e na dignidade…

(Publicado na revista ORDEM DOS MÉDICOS • Julho/Agosto 2012)
                              
João Miguel Nunes “Rocha”

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